Título: Tortura e horror voltam a Bagdá
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Fonte: Jornal do Brasil, 16/11/2005, Internacional, p. A7

Governo mantinha cela clandestina com 170 presos doentes e sem comida

BAGDÁ - Mal começou, e o novo regime iraquiano já demonstra ter integrantes que seguem a cartilha do anterior em alguns dos piores comportamentos da era Saddam Hussein. Militares americanos, que supostamente ''procuravam um menino de 15 anos que havia sido seqüestrado'', encontraram ''por acaso'', uma cela clandestina no porão do prédio onde funciona o Ministério do Interior, em um dos bairros do centro da capital. Dentro, uma cena de horror: 170 prisioneiros desnutridos e doentes, muitos aparentando sinais de terem sido espancados. O porão foi localizado numa operação realizada na noite de domingo em Jadriya.

A informação foi divulgada pelo primeiro-ministro iraquiano, Ibrahim Al Jaafari, durante uma entrevista coletiva. Bastante constrangido, também revelou que os detidos haviam sido torturados. Pouco antes, o subsecretário para assuntos de Segurança do ministério do Interior, Hussein Kamal afirmara que a cúpula do governo em Bagdá estaria ''estarrecida'' com a descoberta, embora não quisesse revelar há quanto tempo funcionava o centro de torturas.

- Todos sofreram abusos, foram tratados de uma forma não apropriada - reconheceu. - Não tinha visto, nos últimos dois anos, uma situação como essa aqui em Bagdá. É o pior cenário - acrescentou Kamal.

O subsecretário descreve ''a situação terrível que os soldados acharam''.

- Os sinais de abuso físico são evidentes, há marcas de espancamentos brutais. Pelo menos dois desses homens apanharam tanto que estão paralisados. Outros - continua - tiveram a pele arrancada em várias partes do corpo. Esse é um tratamento que consideramos inaceitável e que será denunciado pelo ministro e por todos neste país.

Apesar da aparente indignação, Hussein Kamal confirmou que todos os prisioneiros haviam sido detidos legalmente, ou seja, havia ordem de prisão contra eles. Recusou-se, porém, a dizer em que época teriam acontecido. Mas garantiu que assim que a cela clandestina foi descoberta, seus ocupantes foram transferidos para um hospital, onde recebem tratamento.

Kamal, no entanto, sabia da existência da cadeia, conforme declarações que deu em seguida à imprensa árabe.

- Os detentos eram mantidos naquele porão porque o Ministério da Justiça, encarregado de conduzir os processos, não possuiria um lugar adequado para mantê-los até serem levados diante dos juízes. Esse era o problema real, a falta de locais para manter os terroristas - afirmou o subsecretário, que é major-general do exército.

Também não conseguiu explicar as razões que motivaram as ordens de captura. Sabe-se, no entanto, que a maioria dos homens é acusada de apoiar a resistência contra o governo eleito - majoritariamente formado por xiitas e curdos. A minoria sunita tem denunciado a ação de milícias paramilitares controladas pelo Ministério do Interior e por partidos xiitas. Tais grupos estariam realizando operações anti-insurgência ''sem autorização ou conhecimento do governo eleito''. O gabinete de Jaafari nega a acusação, mas a descoberta do porão deixou as autoridades, sobretudo Kamal, em posição delicada.

O major afirma que o primeiro-ministro, que é xiita, ordenou uma investigação completa sobre o incidente. O encarregado será um vice-primeiro ministro curdo.

- Quem quer que tenha cometido essas barbaridades, será responsabilizado legalmente perante a Justiça - prometeu.

Envolvidos no meio do imbroglio, os militares americanos estão pisando em ovos. Ao mesmo tempo em que não escondem o horror diante das condições nas quais se encontravam os prisioneiros, não podem criticar abertamente a existência da prisão. Um centro de torturas instalado em um prédio pertencente ao governo iraquiano eleito, a quem apóiam, é a pior propaganda para uma força com histórico de abusos em cadeias, como no escândalo de Abu Ghraib.

Fontes do Exército dos EUA garantem que a situação perturbou os soldados. O pior, afirmam, foi reconhecer as marcas de tortura e os sinais de que nenhum dos presos era alimentado minimamente há várias semanas.

- Foi uma surpresa, não esperávamos achar aquilo lá. Nossa busca era atrás de um adolescente - comentou um dos soldados da 3ª Divisão de Infantaria.

Outras versões, no entanto, demonstram que a história oficial pode não ser exatamente a que foi contada aos repórteres. Relatos divulgados em Bagdá indicam que os soldados americanos procuravam a prisão, e não um ''jovem seqüestrado'', em função de insistentes queixas de parentes de alguns dos presos a respeito da atuação ilegal de milícias a serviço do ministério. Foram essas pessoas que deram a localização do centro de torturas no subsolo do prédio.