Título: Revisão de federalismo
Autor: Dalmo de Abreu Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 19/11/2005, Outras Opiniões, p. A11
Por muitas razões, os brasileiros, em sua quase totalidade, estão convencidos de que o Brasil necessita urgentemente de uma reforma política, para que haja moralidade na vida pública, para que se estabeleça a coerência entre o que dizem a Constituição e as leis e aquilo que efetivamente ocorre na realidade e, sobretudo, para que o funcionamento das instituições seja o reflexo da vontade, das necessidades e das aspirações do povo brasileiro. Numa síntese, existe a convicção de que é necessária e urgente uma reforma política para que o Brasil seja, efetivamente, um Estado Democrático de Direito.
A expressão reforma política é genérica e comporta diferentes concepções, mas tendo em conta os vícios e as falhas que se pretende corrigir por meio de uma reforma, assim como os objetivos ambiciosos que se acha possível atingir por meio dela, fica evidente que a reforma política deverá ser mais do que o aperfeiçoamento do sistema de partidos ou da legislação eleitoral. Esses dois pontos são de inegável importância e devem estar incluídos numa reforma expressiva, mas é preciso pensar em mudanças de maior amplitude e profundidade, admitindo, inclusive, a necessidade de introduzir modificações em pontos fundamentais da organização política.
Numa reforma de grande amplitude e profundidade, que possa fundamentar o estabelecimento da dignidade na vida política, que assegure o uso das instituições políticas para buscar satisfazer, prioritariamente, os interesses do povo brasileiro, que represente a garantia do compromisso ético e do relacionamento respeitoso e civilizado entre os ocupantes de cargos políticos, numa reforma política dessa amplitude deverá merecer cuidadosa revisão o federalismo brasileiro. Como tem sido reconhecido por muitos estudiosos da vida política brasileira, e eu próprio já tive oportunidade de assinalar em trabalho acadêmico que a implantação do federalismo no Brasil não foi o resultado de uma aliança de Estados em busca de unidade política superior, mas, bem longe disso, foi o resultado de uma aliança de oligarquias, todas integrantes do Estado brasileiro.
O que pretenderam os oligarcas, com a descentralização do Estado por meio da adoção da forma federativa, foi a obtenção de ampla autonomia política e administrativa, concedida e garantida pela Constituição, autonomia para o uso, com ampla liberdade, de meios que assegurassem a continuidade de seu predomínio político em suas respectivas áreas. Entre esses meios incluíam-se recursos financeiros recebidos da União ou arrecadados pelo próprio Estado federado, assim como os serviços públicos disponíveis. Para maior eficiência política e visando evitar embaraços jurídicos, os Estados obtiveram o poder de legislar e o comando formal do Executivo, escolhido no Estado sem qualquer interferência externa. Cada Estado ficou encarregado da ordem interna em seus respectivos limites, incluindo a ordem eleitoral. Para coroamento da autonomia, obtiveram o seu próprio Judiciário, competente para dirimir dúvidas sobre legalidade dos atos dos oligarcas e alegações de irregularidade. A par disso, os Estados obtiveram direito de enviar representantes para uma das Casas do Parlamento, o Senado, repetindo o que fora feito na criação dos Estados Unidos, quando se criou o Senado para sustentar a manutenção da escravatura.
Quem tem algum conhecimento da história política brasileira na República sabe que a adoção da forma federativa facilitou e favoreceu a implantação de vícios políticos que, desde o início do período republicano, impediram o estabelecimento de um sistema eleitoral verdadeiro, democrático, isento de corrupção, e isso se refletiu na representação política. O exercício arbitrário do poder, o uso de recursos públicos em benefício das grandes famílias ligadas à oligarquia, a distribuição de cargos públicos entre parentes e amigos, a manipulação dos serviços públicos, obtendo-se a submissão por necessidade ou gratidão por equívoco, preciosos garantidores da clientela eleitoral: tudo implantado e mantido à sombra do federalismo. As migrações internacionais e a modernização da exploração econômica produziram mudanças em regiões do país, eliminando, em parte, esse vícios, mas em muitos Estados permanecem praticamente intactos os vícios originários e isso se reflete na política nacional. Quando se fizer a reforma política no Brasil será absolutamente indispensável a revisão do modelo brasileiro de federalismo.