Título: Ressalvas ao milagre chinês
Autor: Rafael Rosas
Fonte: Jornal do Brasil, 21/11/2005, Economia & Negócios, p. A19

O crescimento chinês de 9% ao ano há mais de uma década não surpreende o professor Yi Feng, diretor da Universidade de Claremont, na ensolarada Califórnia. Nascido no país asiático, Feng veio ao Brasil participar de um seminário do Ibmec sobre a ascensão chinesa no cenário internacional. O professor é, no entanto, uma voz dissonante do coro que exalta os avanços e acredita que o gigante precisa vencer grandes desafios para se tornar, em definitivo, uma potência econômica. Entre os principais alertas que faz sobre a economia chinesa estão o crescente fosso entre os mais ricos e os mais pobres e a falta de industrialização para gerar riqueza no setor rural.

Feng ressalta ainda que este fosso pode impedir a consolidação de uma grande classe média, condição importante para garantir a estabilidade política necessária para qualquer país em desenvolvimento atingir o crescimento sustentado e afirma: a política pode ser boa ou ruim, mas não pode sofrer mudanças bruscas.

Enquanto confessa a torcida para ver a chuva longe do Rio de Janeiro ¿para poder andar no bondinho do Pão de Açúcar¿, o professor garante que o câmbio flutuante não se tornará uma realidade na China e que o país caminha para virar de fato uma economia de mercado, embora ainda enfrente problemas graves, como a pirataria e a falta de liberdades políticas.

Quais os principais desafios para a China se tornar de fato uma grande potência? A China vem crescendo 9% ao ano nos últimos 15 anos. Muitas pessoas acreditam que este tipo de crescimento não pode ser sustentado para sempre. Este é o primeiro desafio que o país terá que superar: garantir que o crescimento econômico pode ser mantido no longo prazo. Outro desafio é o uso de recursos naturais. A China não é um país tão rico em termos de alguns recursos. O país tem 1,3 bilhão de habitantes, 21% da população mundial, e apenas 5% da água doce do mundo, por exemplo. O terceiro desafio é que quando um país desenvolve a economia, algumas pessoas ficam ricas e outras acabam relativamente mais pobres. O fosso entre os que têm e os que não têm está se expandindo há algum tempo e isso pode resultar em instabilidade política e até em caos social. Esses são os três principais desafios: a continuidade do crescimento sustentável, a preservação dos recursos naturais e o combate à desigualdade.

Como a China pode manter os atuais níveis de crescimento? Para manter o atual crescimento, a China tem que assegurar que as pessoas no campo se manterão produtivas. É muito importante urbanizar o campo, pois 60% dos trabalhadores chineses estão lá. Nos últimos 20 anos, muitos fazendeiros foram para as cidades em busca de emprego. Sabemos que é importante desenvolver as indústrias. Mas para manter o crescimento, precisamos desenvolver o campo e o campo só se desenvolverá com algum nível de industrialização do agronegócio, o que acontece com todos os países em desenvolvimento, inclusive no Brasil.

Nos anos 60, Brasil e Coréia do Sul eram vistos como países do futuro. Desde então a Coréia consolidou forte crescimento sustentado, enquanto o Brasil ficou para trás... Existem três variáveis muito importantes para o crescimento sustentado. Estabilidade política, consenso político e a continuidade da política econômica. A estabilidade política garante a ocorrência de poucas revoltas e greves, por exemplo. O consenso político ajuda a a população a ter o mesmo julgamento sobre o país. E isto depende em larga medida da distribuição de renda. Se você tem pessoas que são muito ricas e outras que são muito pobres, elas terão opiniões muito divergentes sobre a política econômica, o que pode afetar a estabilidade política. Finalmente há a continuidade. A política pode ser boa ou ruim, mas não pode sofrer mudanças bruscas. A consistência da política econômica serve para que os investidores saibam o que esperar. Estes são os três níveis mais importantes. A Coréia do Sul foi capaz de atingir muitos objetivos porque é politicamente estável. E também tem uma classe média muito forte, o que é importante porque traz consenso político em uma fatia grande da sociedade. E no período de tempo dos anos 70 aos 80 a política econômica do país se manteve estável, estimulando exportações. Por causa disso, o crescimento sustentado da economia foi bem sucedido.

A China está mais para Brasil ou Coréia? A China é relativamente estável politicamente, mas precisa abrir mais o sistema. O país também precisa estabilizar sua política econômica. Por isso, limitaram a flutuação do yuan (em 21 de julho, o governo chinês autorizou a flutuação de até 2% da moeda do país em relação a uma cesta de moedas), para não causar especulações nos mercados. Outra variável para o crescimento sustentado da China é a distribuição de renda. A desigualdade tem crescido muito entre as pessoas das cidades e as do campo desde os anos 90. A questão é fazer as pessoas do campo mais ricas, de modo a evitar instabilidades.

Os bancos chineses estão preparados para o câmbio flutuante? Não acho que os bancos chineses estejam preparados. Mas um sistema de câmbio completamente flutuante não vai ser posto em prática. As pessoas não estão preparadas para isso. O debate é sobre qual a banda exata para controlar a variação da moeda. Alguns meses atrás, o governo valorizou a moeda em cerca de 2% e muita gente no Ocidente afirmou que a valorização deveria ter sido de pelo menos 15%. Esse pequeno ajuste indicou o quão longe os responsáveis pela política econômica chinesa podem ir. O governo não fará grandes mudanças, mas apenas pequenos ajustes.

A China foi aceita em 2001 na Organização Mundial do Comércio. Quais as principais dificuldades do país para seguir as normas da OMC? Um dos grandes desafios chineses para seguir as regras da OMC é reduzir as violações de direito autoral e de propriedade. O governo tem que trabalhar duro para ter certeza que as violações diminuirão. Por outro lado, o mercado está muito mais aberto do que antes da entrada na OMC. A China está preparada para controlar sua moeda para competir, mas precisa combater mais as violações de copyrights.

A China caminha para se tornar de fato uma economia de mercado? A China precisa do reconhecimento de outros países. Alguns já reconheceram, como o Brasil, mas outros não. Acho que a China está caminhando para se tornar uma economia de mercado, mas não na definição clássica. Até porque não existe uma definição exata de economia de mercado. Um bom exemplo é Cingapura, que tem na verdade uma economia centralizada, com intervenções do governo no intuito de aumentar a eficiência. Acho que a China terá uma economia de mercado, mas diferente dos Estados Unidos e de Cingapura.

Estados Unidos e China chegaram no último dia 8 a um acordo sobre têxteis, limitando as exportações chinesas até 2008. Novos acordos, com o Brasil, por exemplo, são possíveis? A OMC decidiu que a cota sobre produtos têxteis seria extinta este ano e a China viu suas exportações dispararem. O país tem muitas vantagens competitivas no setor, o que pode afetar seriamente as economias de alguns países. E estes países podem propor medidas para evitar perda considerável de empregos. Muitos procuraram a OMC para cobrar a redução das exportações chinesas. Isto aconteceu nos EUA e vai acontecer na Europa e no Brasil. É uma questão de negociação.

Como o novo presidente nomeado para o Federal Reserve (Fed, o banco central americano), Ben Bernanke, pode influenciar a economia chinesa? O trabalho de Bernanke é muito complexo. Ele vai tentar fazer a China valorizar o yuan, exatamente como Greenspan (Alan, atual presidente do Fed) fez antes dele. Por outro lado, ele terá que encarar um grande déficit comercial em relação à China, mas que garante a compra de títulos do Tesouro americano e o financiamento do déficit fiscal dos Estados Unidos. Mas o déficit comercial americano cria um grande problema político. Bernanke pressionará para o governo chinês valorizar a moeda, o que pode levar, e ele sabe disso, a redução da compra de títulos pela China e ao aumento dos juros nos Estados Unidos. Como se vê, definitivamente não é uma solução simples.

Recentemente, as siderúrgicas chinesas deixaram claro que atuarão em conjunto para limitar o reajuste dos preços do minério de ferro, o que afetaria a Vale do Rio Doce. Esta decisão pode ser um novo ponto de pressão nas relações comerciais entre Brasil e China? Sempre que países se envolvem em relações comerciais há conflitos. É muito raro a economia de um país complementar a de outro. A combinação perfeita nunca existe. Sempre há vencedores e perdedores. Um exemplo é o que acontece entre Estados Unidos e China. Certamente o capital americano é o vencedor em relação ao capital chinês, até porque tem mais liberdade de ação. Mas os trabalhadores americanos são perdedores, porque perdem empregos para China e Índia. No caso do minério, não sei quanto a China importa do Brasil, mas posso ver os perdedores, que são as siderúrgicas brasileiras, que sempre usaram o minério brasileiro e, agora que a China compra grandes quantidades, estão pagando caro por isso. Estes são os perdedores domésticos. Em compensação, os produtores de minério estão felizes com os preços altos.