Título: Banqueiros têm sonho de 2006 garantido?
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 22/11/2005, Outras Opiniões, p. A11

Tem razão a senadora Heloisa Helena quando ironiza a relação de amor e ódio que disfarça a cumplicidade doutrinária entre os segmentos hegemônicos do PT e o PSDB. Com isso, foge da armadilha que o noticiário da grande mídia tenta impor, quando dá destaque a uma falsa dicotomia entre as duas legendas do social-liberalismo no Brasil. Por aí, ao enfrentar legendas de oposição marcadamente conservadora, o governo vestiria um manto progressista. O que, evidentemente, não corresponde a um mínimo de realidade. Se combate entre as duas vertentes existe, é tão-somente pelo valiosíssimo controle do aparelho do Estado e das verbas do Orçamento. Porque, em termos programáticos, ambas defendem a subordinação incondicional aos paradigmas monetaristas do FMI. E para tornar isso claro, a esquerda conseqüente não pode concentrar fogo no PT. Tem que saber juntá-lo à memória das seqüelas produzidas pelos antecessores.

A última semana foi, sem dúvida, pródiga de exemplos comprovantes do que há de falacioso neste cenário de dicotomia criado pela ficção jornalística. Vale retomar, como ponto de partida, a entrevista de José Dirceu ao Canal Livre da Bandeirantes. Ali, o ex-condestável da República evidenciou a identidade de mérito programático entre o PT atual - onde Dirceu comprova, a cada novo ato de solidariedade, não ter perdido o mínimo controle da máquina - e a direita conservadora. Nas suas definições sobre o desmonte da seguridade social; sobre o superávit primário, para atender os banqeiros; e sobre o remendo eleitoral, a que se ousa dar título de reforma política, isto ficou evidente.

Veio depois o espetáculo do ministro Antonio Palocci na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. No enredo de sucesso previsível, o namoro disfarçado entre tucano-pefelistas e ''petistas responsáveis'' chegou a exageros. Em meio a constrangedores salamaleques, senadores do PSDB não cessaram de prestar-lhe solidariedade, diante dos ruídos vindos da chefe da Casa Civil, Dilma Roussef. O que impôs salvífica intervenção do líder Aloizio Mercadante, no sentido de garantir que o embate entre ela e Palocci teria se dado nos limites em que ocorreram as desavenças entre Malan e Serra, no governo FHC. Ou seja, menos que embate, uma necessária diferença de tons entre membros de governos semelhantemente subordinados aos retrocessos do Consenso de Washington. Desavenças pontais que permitem ao presidente Lula manobrar para neutralizar lideranças perplexas de movimentos sociais, com base no ''governo em disputa''.

Embate doutrinário nessa história toda, e de alto nível, houve com a senadora Heloisa Helena. Palocci reconheceu já não pensar, no Ministério, como pensava quando deputado de oposição, colega da então líder da bancada petista no Senado. Sobre superávit e sobre prioridades de execução orçamentária, principalmente.

Embate que, para quem não assistiu ao vivo, não existiu a despeito da ampla cobertura. O que não é novidade. Quando se trata de algo que possa prejudicar a imagem da senadora, como a sua suposta adesão às ameaças de surras no presidente Lula - segundo informe distorcido da Agência Folha -, seu nome vira manchete. Sem o mínimo cuidado, ao reproduzir a notícia, de verificar se correspondia ao que ela havia realmente declarado em aparte a Eduardo Suplicy. Mas quando se trata de algo dignificante, silêncio ensurdecedor. Nenhuma transcrição, porque aí só vale ouvir Artur Virgilio, ACM Neto ou Tasso Jereissati.

Compreensível essa deliberada restrição de temas sobre os quais a senadora mereça se manifestar. Nas psquisas, ela vem pontuando mais do que o desejado por quem sonha com um segundo turno sobre controle conservador na sucessão presidencial. Pode criar sérios problemas ao retorno de um mandarinato semelhante ao de FHC, ou a uma tentativa de reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva, num confronto de segundo turno que deixaria os banqueiros diante do saboroso dilema: vencer ou vencer.

Resta saber o que há de imprevisibilidade no comportamento do eleitor. Principalmente aquele que correspondia à base de sustentação fundamental de Lula; os chamados formadores de opinião, os militantes dos segmentos organizados não cooptados pelo Planalto. Na última convocação, por ocasião do plebiscito sobre proibição do comércio de armas, mudou de um extremo a outro ao longo da campanha. Se evoluir da mesma forma no ano que vem, quantos fenômenos semelhantes à eleição de Fortaleza virão por aí?