Título: Jogo duplo com Bush
Autor: Marcia Carmo
Fonte: Jornal do Brasil, 13/11/2005, Internacional, p. A10

BUENOS AIRES - Às desconfianças, agregam-se os freqüentes temores argentinos do ''fantasma'' de o Brasil ser cada vez mais visto como líder regional. Na semana passada, quando o presidente George Bush esteve em Brasília com Lula, os principais jornais daqui estamparam as palavras do americano, enfatizando... a liderança brasileira. O encontro ''Lula e Bush'' rendeu comentários a semana toda. Como o do colunista de economia do jornal Clarin, Marcelo Bonelli, para quem Lula quer manipular o Mercosul em benefício do Brasil. Assim, o governo brasileiro fez um discurso na cúpula de Mar del Plata e outro ao receber Bush em casa.

- Aqui, o Brasil fincou pé junto ao Mercosul e à Venezuela. Em Brasília mudou o tom, falando nas negociações pela Alca - diz um desconfiado interlocutor da Casa Rosada.

Para o economista Orlando Ferreres, amigo do ministro da Economia, Roberto Lavagna, Kirchner se identifica mais com Hugo Chávez do que com qualquer outro. Roberto Bacman acha que o argentino está de olho no projeto de governo do presidente chileno Ricardo Lagos. Com mandato no fim e prestes a fazer a sucessora (Michele Bachelet) em dezembro, Lagos é ''sonho argentino'': tem alta popularidade (chega a 50%, deixa um país em crescimento e com queda na pobreza). Lula já foi o ''amado'' de Kirchner, com quem este adorava tirar fotos. Foi. A coisa esfriou por várias razões: a relação especial do Brasil com o Fundo Monetário Internacional - um dos alvos preferidos do argentino, que desafiou o fundo e venceu, mas sabe-se lá com que conseqüências -, o Conselho de Segurança da ONU, a Comunidade Sul-americana de Nações ou o escândalo em torno do PT e do Planalto.

E há o ciúme. O analista político Oscar Raúl Cardoso recorda que quando Lula defendeu na ONU o combate conjunto da pobreza no mundo, Kirchner não gostou. Pediu, na hora, à sua chancelaria que providenciasse documento semelhante, só que em defesa da geração mundial de empregos. O assunto renasceu na Cúpula das Américas, por sugestão argentina, que preferia esse tema ''global'' à Alca. Na ocasião, o chanceler Rafael Bielsa disse que para ter ares ''imperiais'' o Brasil deveria fazer por onde. Botafogo Gonçalves, que presenciou um ex-ministro da Economia reclamando ''da concorrência desleal dos créditos do BNDES aos empresários brasileiros'', diz que na Argentina ainda há quem queira ''compreensão'' do Brasil. O maior país da região cresceu rápido e forte demais e o vizinho, que foi um Estado riquíssimo, vive a eterna crise de como acompanhá-lo.