Título: Tango azedo
Autor: Marcia Carmo
Fonte: Jornal do Brasil, 13/11/2005, Internacional, p. A10

Cordialidade só existe na aparência. Fora dos holofotes, a Argentina esfria cada vez mais a relação com o Brasil

BUENOS AIRES - Não dá para esconder que as coisas azedaram. Desconfianças argentinas com os avanços brasileiros em política externa, a visível carência de química na relação entre os presidentes Lula e Néstor Kirchner e o aumento das exportações do Brasil para o país vizinho são só alguns itens que pesam na estagnação bilateral e, conseqüentemente, do Mercosul. Nesse imbróglio somam-se questões classificadas pelos argentinos de ¿exageradamente ambiciosas¿ de Brasília, como a ¿insistência¿ em ¿pretender¿ uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU e de ¿reiterar¿ a criação da Comunidade Sul-americana de Nações. Na lista de discórdias, está a chamada idiossincrasia argentina de um passado de glória econômica e social e a certeza de que o Brasil, admitem alguns, não poderia representar o país do tango em fóruns internacionais como a ONU. Somam-se ainda à História e a capítulos repetidos ¿ como as disputas por comércio ¿ o estilo de Néstor Kirchner. Franco para uns, exageradamente ríspido para outros, vai fortalecendo sua imagem junto aos argentinos, como observa o analista político Roberto Bacman, do CEOP, conhecedor das entranhas deste governo. E não fosse pelo temperamento, não faria nada de diferente dos presidentes que o antecederam, como destaca o presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o ex-embaixador do Brasil na Argentina, José Botafogo Gonçalves.

¿ É tolice pensar que a coisa mudou depois da chegada de Kirchner ao poder. Carlos Menem, Fernando de la Rúa e Eduardo Duhalde pensavam do mesmo jeito ¿ avalia.

Que jeito?

¿ Que o Brasil é uma ameaça. Só que diziam de outra maneira¿ responde Botafogo. As diferenças estão no fato de Kirchner ser criticado por carência de uma política externa ¿ sua prioridade é a opinião pública argentina e pronto ¿ e de o Brasil apresentar propostas, como a Comunidade Sul-americana de Nações, que para eles (e os uruguaios também) adia a integração, via Mercosul.

Mas talvez por esse estilo de Kirchner, cada vez que se encontram o presidente Lula o chama de ¿campeão¿. Provavelmente uma forma de tocar o ego do colega. No entanto, dificilmente, admitem assessores brasileiros, Kirchner seria convidado por Lula para a pelada dominical no Palácio Alvorada. Lula e Kirchner trocam telefonemas ¿ só os estritamente necessários ¿ e sabem que a relação do Brasil e da Argentina supera a química ¿ ou melhor, a falta dela ¿ no trato pessoal, como ressalta o cientista político Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nueva Mayoría. É nesse clima frio e com o desafio de sair da retórica sobre o ¿relançamento¿ do Mercosul que os dois se encontram, dia 30, em Porto Iguaçu. O aniversário da criação do bloco contará com a presença dos ex-presidentes José Sarney e Raul Alfonsín.

¿ Existe um grande distanciamento afetivo entre Lula e Kirchner. Isso aconteceu neste último ano ¿ reconhece Bacman. Para ele, além das questões estruturais, pesaram os problemas internos que cada um teve ¿ e ainda tem, no caso de Lula ¿- de enfrentar. Ou seja, presidentes mais preocupados, naturalmente, com as questões domésticas e urgentes e, tudo indica, sem tempo para a costura com os vizinhos.

O analista lembrou que enquanto no Brasil Lula encara denúncias de corrupção, na Argentina Kirchner foi o rosto da última eleição legislativa. Dedicou-se dia e noite a ganhar votos para o pleito, no mês passado, batizado de ¿plebiscito à sua gestão¿. Ganhou com 40% dos votos no país, parecendo ter sepultado os 22% com os quais fora eleito, em 2003, mas não seu estilo de brigar, publicamente, em casa e com os de fora. Como, aliás, se viu no duelo com o presidente do México, Vicente Fox, defensor do cronograma de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) antes de deixar o poder em 2006.