Título: Favelas, ¿solução¿ de moradia?
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Jornal do Brasil, 13/11/2005, Economia & Negócios, p. A22

É lugar comum afirmar que o Brasil padece de uma profunda fratura social. No substrato deste corte está hoje a questão do trabalho precário. São 9,6 milhões de brasileiros em desemprego aberto, 13 milhões em subemprego disfarçado e uma informalidade de 45,3% da População Economicamente Ativa (PEA) de 80 milhões. O terrível está em que, dos 3,5 milhões de desempregados de seis regiões metropolitanas, 46,4% são jovens de 16 a 24 anos. A família uniparental, tendo quase sempre à testa uma mulher pobre com filho(s) de paternidade não assumida, acerca-se de 20% na região metropolitana do Rio. Neste cenário, a violência progride em escalada, fazendo do Brasil o quarto lugar mundial de homicídios por habitante. Agradeço a Elio Gaspari o seu artigo de 12/10 ¿Favelofobia¿. Ele lembrou a velha sentença de Otávio Dias Carneiro: ¿Favela não é problema, é solução. O problema é a falta de moradia¿. Eu agregaria que a favela é a expressão visível do descaso histórico das elites brasileiras pelo povão. E é, ao mesmo tempo, uma incrível manifestação da capacidade popular de sobrevivência. Invade um espaço desprezado pelos outros grupos sociais. Recicla materiais de construção. Cria um padrão arquitetônico e urbanístico. Na favela, a ausência histórica das elites levou o povo a organizar-se no lugar, desde a festa até os ¿códigos¿ de sobrevivência. É fascinante a geriatria de veículos e eletrodomésticos que os artesãos das favelas sabem praticar.

Estou surpreso com a quantidade de artigos e reportagens que tenho lido, no Globo, sobre favelas. Recuperei a memória das remoções de Carlos Lacerda e Negrão de Lima. De um lado ficou o circuito brilhante em torno da Lagoa; na outra extremidade, Cidade de Deus, Cidade Alta/Cordovil e Cruzada São Sebastião, que acolheram os 12 mil moradores transferidos em 1969. É impressionante o sucesso social da Cruzada, em contraste com a tragédia da Cidade de Deus. Afinal, o povo da Cruzada tem emprego ou fonte de renda no asfalto rico do Leblon e de Ipanema, enquanto o povo da Cidade de Deus está imerso na favelizada Jacarepaguá, com parco ¿mercado¿.

Pelas reportagens, soube das 17 favelas de Santa Teresa, das 19 ao longo da Linha Amarela, da zona da antiga Leopoldina, praticamente uma favela contínua etc. Percebi a expansão acelerada de Rio das Pedras (123,5% na última década), hoje com 80 mil habitantes, em relação ao relativamente lento crescimento na Ilha do Governador (18,4% no mesmo período) . É fácil compreender, pois o ¿mercado¿ cresce na Barra e no Recreio. O crescimento da favela, na patologia sócio-econômica brasileira, é um indicador de prosperidade. As cidades de Macuco, com fábricas de cimento, e Porto Real, com a indústria automobilística, acumulam os maiores déficits relativos de moradia no interior fluminense. Joinville, a cidade média brasileira de referência, tinha suas favelas com gente de todo o Brasil. Em busca do ¿mercado¿ a pobreza brasileira ganhou mobilidade territorial. Um microeconomista diria que é transparente o mercado de sobrevivência popular.

Outro fenômeno é o da expulsão dos antigos moradores da favela melhorada. Brás de Pina foi uma urbanização pioneira. Dez anos depois, eram outros os moradores. Na parte baixa da Rocinha está hoje uma pequena classe média. O Favela-Bairro, ao aperfeiçoar 143 comunidades e uma população de 550 mil, já acumula alguns exemplos. Não é surpresa que a comunidade Parque Royal, com 4.146 habitantes em barracos e palafitas em 1994, tenha hoje 8.200 habitantes. Lá surgiram 15 prédios com quatro andares. É a prova de que o povo faz o mesmo que o capital imobiliário nas novas frentes de valorização. Na Rocinha surgiu já um espigão de 11 andares.

O tempo de deslocamento residência-trabalho-residência é a variável-chave da qualidade de vida. O pobre, ao montar sua residência precária numa encosta, num alagado ou numa zona degradada, procura reduzir a zero o custo da moradia e aumentar o tempo de lazer. É extremamente racional sua decisão.

O subinvestimento em infra-estrutura de transporte coletivo é estimulador de favelas. No Rio, dos 7 milhões de viagens diárias por transporte coletivo, apenas 950 mil se fazem por trens, metrô ou barcas. A modalidade rodoviária é cara e bem mais lenta que os sistemas de transporte sobre trilhos. Seria, para o Rio, o investimento da Super Via (metrô de superfície entre Pedro II e Queimados) amplificador de opções locacionais de moradia para os pobres. Não tem sentido repetir remoções, por exemplo da Rocinha e Vidigal, para a Zona Portuária velha ou Avenida Brasil, sem prévio equacionamento do sistema de trilhos. É crueldade retirar as pessoas de sua proximidade ao ¿mercado¿, desagregar suas relações de vizinhança e piorar sua qualidade de vida. A não ser para os que querem multiplicar Cidades de Deus. E liberar zonas agora valorizadas para a especulação imobiliária. Creio que a regularização fundiária, lançando mão da fração ideal (utilizada nas habitações multifamiliares verticais) como constituição de um título de propriedade popular, combinada com uma política inteligente de subsídio financiado de materiais de construção ou casas pré-fabricadas e com uma adequada assistência técnica, permitiria a rápida melhoria das favelas já estabelecidas. Deveríamos pensar em uma home land, que permitisse ao morador pobre se beneficiar da valorização imobiliária e integrar-se aos padrões da ritualidade urbanística. O Favela-Bairro foi um grande passo nesta direção que precisa ser complementado.

Não esqueçamos que provavelmente 30% das residências faveladas estão em localizações com alto risco e de difícil, senão impossível, solução de engenharia. Sua relocalização exigiria investimentos públicos a fundo perdido no Rio da ordem de R$ 5 bilhões em quatro anos. Com o gasto anual de R$ 145 bilhões em juros de dívida pública federal, um programa deste tipo não deveria ser intimidante.

O Favela-Bairro permitiu que se acumulasse no espaço brasileiro um saber urbanístico, arquitetônico e antropológico extremamente sofisticado para a formulação de um programa nacional de desfavelização. É importante preservar a identidade cultural. O que aconteceu no morro da Serrinha é pedagógico. Consulte-se Manoel Ribeiro. É deslumbrante a simbiose entre o samba carioca, o forró nordestino e a transposição criativa dos ritmos importados. A favela, além de tolerante, continua musical. Fundamental que não seja percebida como um gueto. Vejo com preocupação a naturalização da pobreza e a satanização do pobre em um ideário segregacionista urbano. Olho o condomínio e a socialização privada no clube e no shopping center com preocupação. Sei da vulnerabilidade que a violência impõe ao asfalto. Quero lembrar a violência que impomos ao povo da favela ao não vermos neles brasileiros irmãos. O tráfico é uma atividade que prospera ao recrutar jovens da pobreza para os quais não oferecemos alternativa. E cabe não esquecer que o asfalto é o principal ¿mercado¿ de drogas. Não será a remoção, segregação ou satanização que resolverá a questão social brasileira. Creio que O Globo quer mobilizar a opinião pública para resolver a questão da integração. Vejam o que acontece hoje na França com jovens desempregados filhos de imigrantes.