Título: Uma hora com George Bush
Autor: Arthur Ituassu*
Fonte: Jornal do Brasil, 14/11/2005, Outras Opiniões, p. A12

Os países da América do Sul sofrem de um fenômeno comum específico que gera conseqüências às políticas domésticas e externas da região. Em repúblicas centenárias, cujos governos arrecadam boa parte da renda gerada no continente, é generalizada a incapacidade das autoridades de produzir bens como educação e saúde básicas e universais, acesso igualitário à Justiça e segurança pública - um tema que promete dominar as próximas eleições brasileiras. O problema, comum nos países sul-americanos, não só traz prejuízos por si só como se perpetua, propiciando espaço hábil para o surgimento de plataformas políticas que procuram apontar um inimigo externo e/ou interno como causador das tragédias e misérias locais, muitas vezes por meio da criação de uma referência ideológica que serve de mecanismo de coesão.

Atores e estruturas internacionais são muitas vezes colocados como alvos de tais práticas políticas, como é o caso dos Estados Unidos, do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial, do comércio internacional (em geral), dos bancos, etc. Uma tipo particular de ação que tenta esvaziar os interlocutores da responsabilidade política sobre o ''estado das coisas'' e aglutinar massas em torno de um ''outro conveniente'' freudiano.

Levantei o assunto em uma reunião com o presidente dos Estados Unidos, George Bush, no último domingo, em Brasília, quando fiz parte de um encontro em que 15 brasileiros puderam conversar por quase uma hora com Bush sobre vários temas, sem a presença da imprensa.

Sem dúvida alguma, e não sem poucos motivos, Bush é hoje um dos grandes ''Judas'' do nosso tempo e a perpetuação dessa situação vem com clareza ajudando determinados políticos sul-americanos a reunir grandes maiorias em torno de um modelo alternativo de vida em comunidade na região, cujo processo de transformação (independentemente da sua eficácia) vem polarizando as sociedades e levando às instituições a limites muitas vezes perigosos, como é o caso na Bolívia, no Equador e na Venezuela. De fato, tais plataformas políticas têm servido ao longo da história sul-americana para (1) perpetuar a falta de atenção dos governos da região com relação às necessidades básicas das populações, (2) dificultar as relações dos países do Sul com os do Norte, em especial com os Estados Unidos, e (3) gerar forças radicais muitas vezes bastante dispostas a produzir rupturas institucionais, constituindo uma imagem da estrutura social dominada pela instabilidade.

George Bush tratou do tema apresentando à mesa a sua ''visão de mundo'' sobre o hemisfério. Algo que voltaria a repetir, mais tarde, após o encontro com o presidente Lula. O hemisfério do presidente americano é um onde a movimentação de bens, capital, negócios e pessoas é livre do Alaska à Patagônia, uma região formada por democracias e livre das drogas e da corrupção, onde é possível para todos educar as crianças e ter o mínimo para constituir valores familiares como a ''compaixão'' e o ''amor'', uma América unida para fazer frente à competição emergente de Índia e China.

Além da visão idílica do continente sustentada numa fraca produção do medo, Bush fez questão de beber a água brasileira na cerimônia com Lula, depois que a imprensa reclamou que o presidente americano havia trazido um suprimento próprio dos EUA. Bush também elogiou os programas brasileiros de combate à Aids, esbarrando no polêmico terreno das patentes; disse que a idéia de incentivar o uso do álcool como combustível para o transporte é ''bastante inteligente''; e fez questão também de elogiar o churrasco que o presidente Lula ofereceu na Granja do Torto, no momento em que a carne brasileira está em apuros no mercado internacional. Ainda, apoiou publicamente o pleito do Brasil na Organização Mundial do Comércio contra os subsídios bilionários que os EUA, a Europa e o Japão dão a seus agricultores, prometendo um plano de redução progressiva da ajuda ao setor, se a Europa também concordar em fazer o mesmo - jogando para Bruxelas o peso da culpa pela pobreza mundial.

O presidente dos EUA claramente passou pelo Brasil depois dos protestos na última Cúpula das Américas, na Argentina, para: (1) apresentar a sua ''visão de mundo'' sobre o hemisfério (do qual a Alca seria apenas uma parte); (2) cooptar o apoio de um governo Lula enfraquecido internamente e (3) colocar na mesa da política externa brasileira uma proposta de parceria em projetos para a região previamente estabelecidos em Washington, em troca de benefícios e apoios em alguns temas - com a exceção notória daquele em que o governo brasileiro mais insiste em fazer presente, o da segurança internacional, pelo Conselho da ONU.

A proposta serve aos EUA no sentido de estabelecer um parceiro mais concreto numa região onde o anti-americanismo cresce de forma exponencial, alimentando projetos políticos radicais perigosos. Para o Brasil, um eventual processo de aproximação nas relações com Washington pode gerar custos políticos perigosos para a sustentação política do presidente Lula, tanto no plano doméstico quanto no regional. No entanto, o principal problema diz respeito ao fato de que o plano americano para o futuro do hemisfério foi apresentado pronto, acabado, o que gera uma natural insegurança da outra parte com relação à influência que terá sobre a sua constituição.

Ao mesmo tempo, uma parceria do Brasil com os EUA poderia servir de instrumento para o aumento da pressão internacional com relação à questão dos subsídios agrícolas, que se abolidos podem servir a qualquer governo em Brasília às vésperas das eleições, ajudando Lula a se mostrar novamente como um candidato forte para 2006, com base, quem diria, na economia e na política Externa, fortalecendo a imagem da esquerda no Brasil e enfatizando, ao mesmo tempo, e regionalmente, um sentido pragmático de transformação, algo que poderia ser finalmente aprofundado no segundo mandato.

De um jeito ou de outro, a integração hemisférica não pode ser tratada como um ''fim'' mas como um ''processo'', e para isso tem de ser ''politizada''. Esse talvez seja hoje o mais importante desafio da diplomacia brasileira.

*Arthur Ituassu é professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e editor de Internacional na Jorge Zahar Editor.