Título: Liberdade nos Quilombos
Autor: Frei David Santos
Fonte: Jornal do Brasil, 20/11/2005, Opinião, p. A15

Refletir sobre os 505 anos de luta do povo de Zumbi tem um significado político, religioso e social muito grande no contexto do despertar da consciência da comunidade afrodescendente do Brasil e da América Latina. É refletir também sobre o significado da fé e da resistência heróica de um povo que, mesmo mutilado em sua dignidade, segue resistindo. Por aí passa a construção da proposta pluri-étnica do Quilombo de Palmares. Os quilombos eram espaços de liberdade onde negros, índios e brancos pobres, juntos, gestavam o amanhã do Brasil. Todos os que abraçavam aquele projeto habilitavam-se a ser construtores da nova sociedade. Era uma maneira concreta e direta de protestar contra a sociedade colonial vigente, uni-étnica, onde índios e negros só tinham espaço na condição humilhante de escravos. O espaço político privilegiado por Deus foi o espaço que valorizava a igualdade pluri-étnica. No entanto, o poder de persuasão ocidental levou a história brasileira a navegar na contra-mão do direito e da justiça de Deus por longos séculos, abraçando a desigualdade, dando ênfase ao ter, possuir, em detrimento ao ser, partilhar. Os quilombos, naquele novo espaço de liberdade, poderiam fechar-se somente em sua compreensão religiosa tradicional africana. No entanto, eles sabiam diferenciar Jesus Cristo e seu evangelho da prática dos cristãos colonizadores em terras brasileiras. Os quilombolas reprovavam a prática religiosa dos cristãos, pois não valorizavam a justiça e o respeito ao diferente, e por outro lado souberam perceber o potencial libertador trazido por Jesus e seu evangelho e o abraçaram. Numa das guerras contra os palmarinos, a dos colonizadores Holandeses em 1645, chefiada por Blaer-reijmbach, o escrivão dos colonizadores relata que encontrou no centro do mocambo uma casa religiosa, com imagens de santos católicos, entre elas a imagem do menino Jesus ricamente adornada com objetos religiosos africanos. A inculturação, tão discutida hoje na Igreja Católica e outras Igrejas, já era algo normal e praticada nos espaços de liberdade chamados de quilombos. O Quilombo dos Palmares gestou, ao longo de sua existência, uma utopia que hoje é atualizada e precisa ser retomada nos quatro cantos do Brasil em forma de proposta de ação dos militantes negros, das entidades civis, partidos políticos, dos governos federal, estaduais e municipais e toda sociedade. Devemos ter consciência de que o Brasil é hoje o grande quilombo que queremos, para negros, brancos, indios, orientais. Para o projeto de inclusão acontecer serão necessárias mudanças radicais na vida nacional, que devolvam aos povos negros e índios seus plenos direitos de cidadãos, destruindo todos os artifícios criados ao longo destes 505 anos, que fizeram surgir o ''apartheid à brasileira''. Não podemos esperar que os nossos jovens afro-brasileiros que estão morrendo fora de nossas universidades públicas façam quebra-quebra, como na França. Para começar, uma medida prática e urgente será a de transformar as universidades públicas, elitistas e brancas, em espaço pluri-étnico de partilha diversificada. Hoje, apesar de a população negra brasileira (negros e pardos) ser 45,6% do total da população brasileira (IBGE 2000) ou 59% (Datafolha/95), não chega a 5% o número de negros (as) que conseguiram entrar nas universidades públicas. Que as universidades públicas tenham, no mínimo, 50% de estudantes provenientes dos povos historicamente oprimidos, a exemplo do que já acontecem na Rússia, Índia, Alemanha etc. Esta é uma luta teimosa porque, no conjunto da sociedade brasileira, ainda há uma rejeição, medo e preconceito de se tocar neste assunto. Levar a luta adiante só é possível para aqueles que estão imbuídos da certeza de que esta luta é digna e faz parte da construção do Reino de Deus. Diretor-executivo da Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes) e frade da Província Franciscana do Imaculada Conceição do Brasil