Título: Genoma: patrimônio da humanidade
Autor: Emir Sader
Fonte: Jornal do Brasil, 20/11/2005, Opinião, p. A15

A publicação, em abril de 2003, da seqüência integral do genoma humano, é uma das conquistas mais importantes da ciência em toda a sua história. Além disso, esse ato colocava o genoma no domínio público para que todos os pesquisadores possam utilizá-lo como ponto de apoio para descobrir a totalidade dos genes, sua localização, seu significado e, sobretudo, seus mecanismos de controle. O prêmio Nobel de medicina em 2002, o inglês John Sulston, denuncia os riscos de privatização do genoma. Os riscos de privatização desse conhecimento são reais. A empresa estadunidense Myriad, com sede em Utah, conseguiu obter uma quantidade suficiente de informações para localizar o gene e o diretor científico da empresa correu para pedir um registro de patente no dia seguinte. Com essa patente em mãos, a empresa ameaçou processar qualquer outro laboratório nos EUA que utilizasse um desses genes para neutralizar o câncer de seio. Esta política lhe permitiria ser o único laboratório a efetuar esse procedimento. Com as novas revelações científicas, surgirão novas terapias e Myriad ficaria como a única empresa habilitada a colocá-las em prática.

Trata-se, como em tantos outros campos, da questão essencial da propriedade dos produtos das pesquisas. A comunidade internacional dos pesquisadores deveria lutar para manter no domínio público todas as informações sobre a seqüência do genoma humano. Um encontro internacional estabeleceu três pontos para essa política: a) divulgação automática das reuniões das seqüências de mais de mil bases (se for possível, em 24 horas); b) publicação imediata das seqüências anotadas terminadas; c) objetivo de tornar a seqüência livremente acessível, no domínio público, ao mesmo tempo para a pesquisa e o desenvolvimento, com o fim de maximizar as vantagens para o conjunto da sociedade. Esses pontos serviram de referência para todos os grandes projetos se seqüência financiados por fundos públicos.

Os princípios do livre acesso e da divulgação instantânea significam que todos os biólogos do mundo podem utilizar os dados, convertê-los, para criar novas invenções, que possam eventualmente ser patenteadas. Mas a própria seqüência, uma vez divulgada sob sua forma bruta no domínio público, torna-se impossível de ser patenteada. Um estudo realizado em laboratórios universitários dos EUA revela que grande quantidade deles renunciou a trabalhar com certos genes por medo de ter que pagar royalties exorbitantes ou de ser processado. O número de pedidos de patentes para os genes já superou o meio milhão e vários milhares já foram concedidos.

Desenvolveu-se uma tendência, nas últimas décadas, de que cientistas sejam levados a explorar comercialmente suas produções, sem consideração pelas conseqüências dessa opção sobre o conjunto da sociedade. Mas a seqüência do genoma é uma descoberta, não uma invenção. Trata-se de um objeto natural que já existia, antes que nos déssemos conta dela. É um bem comum, como a terra e como a água, não pertencendo a ninguém em particular, para poder pertencer a todos.

No caso do genoma humano, o tema é mais importante ainda, porque cada um porta em si uma cópia pessoal e única do genoma humano. Ninguém pode, no entanto, ser o proprietário de um gene, pois isto significaria que ele deteria também um dos meus genes. A obtenção de uma patente não outorga a propriedade de um gene no sentido estrito, mas ele confere o direito de impedir que os outros utilizem esse gene em toda atividade comercial.

Para evitar que as conquistas científicas não sirvam apenas para fazer com que vivam mais e melhor os que têm as maiores expectativas de vida e melhores condições de vida, ao invés de beneficiar a grande maioria da humanidade, que vive pouco e muito mal, é preciso impedir tornar públicas essas conquistas. É o que busca o consórcio internacional de laboratórios, reunidos com o nome de Projeto Genoma Humano, que conseguiu fazer para a seqüência bruta dos genomas. Será preciso garantir a publicação do máximo de informações, sobre a seqüência dos genes e também sobre suas funções. Os dados de base devem ser acessíveis a todos, para que cada um possa interpretar, modificar e transmiti-los.

A tendência a priorizar a propriedade privada em detrimento dos bens públicos representa privilegiar a comercialização dos conhecimentos e não sua disponibilidade para toda a humanidade. O genoma deve ser patrimônio inalienável de toda a humanidade e não propriedade particular de algumas empresas privadas.