Título: O notável vôo cego dos gestores da Varig
Autor: Cláudio Magnavita
Fonte: Jornal do Brasil, 20/11/2005, Economia & NEGÓCIOS, p. A20

O balanço dos sete meses de gestão de David Zylbersztajn, Omar Carneiro da Cunha, Eleazar de Carvalho e Marcos Azambuja no Conselho de Administração da Varig foi desastroso. A empresa saiu de um lucro operacional de R$ 450 milhões no primeiro trimestre de 2005, na gestão do comandante Carlos Luiz Martins, para um prejuízo de R$ 778 milhões em sete meses, quase R$ 110 milhões por mês. Os quatro gestores afastados cometeram um festival de equívocos, que só agravou a crise da maior companhia aérea do país. Eles tiveram carta branca do Conselho Curador da Fundação Ruben Berta ¿ que aceitou ao extremo a outorga de poderes que tinham feito na contratação ¿ e não sofreram nenhum tipo de interferência em seus trabalhos. Já entraram na companhia desconhecendo o negócio que passariam a gerir e com um mandato específico para escolher uma das propostas de compra que estavam na mesa. O mandato, porém, foi desvirtuado, transformando-se em gestão plena, o que acabou levando o próprio Omar Carneiro da Cunha a acumular a vice-presidência do Conselho de Administração com a presidência executiva da companhia. Isto não fazia parte do plano original, que acabou transformando-se numa relação Frankenstein, onde a criatura monstro revolta-se contra o seu criador.

Batizado de ¿notáveis¿ pela mídia, o grupo isolou os demais membros do Conselho, chegando ao ponto de misturar os próprios interesses, quando propôs a criação de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE), na qual só os quatro seriam os gestores da carteira de ações da Fundação Ruben Berta. As resistências naturais ao negócio obrigaram a estabelecer novos rumos com possíveis investidores.

A empresa aérea portuguesa TAP, na primeira rodada de negociações para entrar como sócia da Varig, em junho, teve o seu projeto substituído por uma cópia do plano que o grupo de notáveis tentou executar sozinho. Tudo naufragou e a Varig foi levada ao perigoso mergulho na recuperação judicial, que teve os seus bastidores revelados numa reportagem exclusiva do Jornal do Brasil em 27 de junho de 2005, com o título ¿Sem tempo para aprender¿.

Dois meses após a entrada no pedido de Recuperação Judicial, o próprio Zylbersztajn afirmou que foi ¿o pior negócio¿ que a companhia poderia ter feito. Segundo ele, teria sido melhor ter devolvido os aviões que estavam ameaçados de perder. Tal ação deixou a companhia sem caixa e a mesma passou a fazer todos os seus pagamentos à vista. Um colapso que agravou ainda mais o quadro desesperador da empresa.

A fase dos ¿notáveis¿ será lembrada na Varig como o período em que o quarto andar de sua sede foi tomado por assessores e consultores externos que, ganhando alta remuneração, chegaram a duplicar o custo administrativo da companhia.

Na área pública, o relacionamento dos notáveis foi... notável. Para não dizer o contrário. Na primeira visita ao vice-presidente José Alencar, o grupo saiu com a solução debaixo do braço e horas depois foi desmentido por Banco do Brasil e Infraero.

Fizeram questão de afrontar o governo aflorando os laços carnais com os partidos de oposição. No evento de comemoração dos 50 anos do vôo inaugural da Varig para Nova York, o convidado de honra foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ex-sogro de Zylbersztajn.

A leviandade de alguns atos beirou o ridículo. Como exemplo, no auge da crise da empresa, pegar um avião e levar espalhafatosamente o apoio da companhia à campanha do desarmamento. O resultado final das urnas demonstrou o constrangimento gratuito a que a empresa se submeteu.

Também não há o que justifique o fato do presidente do Conselho de Administração ir a Cancún em pleno período de crise aguda e com a assembléia de credores em curso. A facilidade de se abstrair da realidade sempre foi notável, como o recente pedido de licença do presidente executivo, que saiu de Nova York, após audiência que poderia selar o futuro da companhia, para cumprir agenda particular de 10 dias na França.

Com a recuperação judicial, a situação virou uma fratura exposta. Sem caixa e sem fôlego para pagar o dia-a-dia, a empresa arranjou fórmulas mágicas para pagar os seus assessores e até quitar uma fatura de US$ 2,5 milhões com um fundo americano que deveria emprestar dinheiro à companhia. A exposição deste negócio, feito sob meias-palavras, já que ao administrador judicial disseram que teria que ser feito ¿um pagamento¿, mas não ¿o quanto¿. Foi o primeiro grande embate com o Conselho de Curadores, que constrangidos passaram a acompanhar cada passo dos gestores.

O administrador judicial, João Vianna ¿ a quem os funcionários da Varig ainda reconhecerão o papel de magistrado neste processo ¿, teve que pedir a destituição dos atuais destituídos por absoluta falta de prestação de contas. Eles ignoraram a figura do administrador judicial, da mesma forma que ignoraram os acionistas e o procurador de fundações em Porto Alegre.

Sindicatos e associações de classe também tiveram seu quinhão de indiferença e provocação. Foram deixados de lado em todo o processo e os interlocutores foram sempre os assistentes dos assessores dos notáveis.

As negociações com a TAP, já na rodada final, estiveram a ponto de naufragar por conta da condução do processo e das mudanças de regras. Ao invés de negociar e avisar os credores, um novo quadro foi levado para o plenário sem o respeito de uma consulta prévia. O negócio quase não foi selado e, em Nova York, o representante do mesmo fundo americano que recebeu os generosos US$ 2,5 milhões estava de boca aberta, como um voraz jacaré esperando que VEM e VarigLog caíssem no seu papo.

As relações incestuosas de Eleazar de Carvalho com o banco que presidiu, o BNDES, serviram para que, nos bastidores, o banco agisse de forma dura. Eleazar, que nunca fez nada pela Varig quando tinha a chave do cofre, pareceu usar sua influência e conhecimento para conduzir as negociações no Dia D. O banco afastou estranhamente um profissional do quilate de Sérgio Varela, que numa assembléia de credores, sob a tutela da justiça, leu um documento e se comprometeu em nome da instituição. Tudo isso foi jogado na lata do lixo, como se a palavra dada em juízo e as premissas aprovadas na segunda parte da assembléia não valessem nada.

Culpada historicamente por grande parte dos problemas de governança na Varig, a Fundação deu carta branca e não interferiu. O maior erro dela neste caso foi o de essência, ou seja, nomear a equipe de notáveis, sem perceber que estava colocando elefantes em uma loja de cristais.

Na primeira coletiva, os curadores, representando os acionistas, foram colocados no fundo do salão e nem um pio em sua defesa foi dado por David Zylbersztajn. Nestes sete meses, o dono do ¿emprego mais sexy do país¿, como ele rotulou a sua função de presidir o Conselho de Administração da empresa, promoveu um strip-tease público de uma senhora de 76 anos. Só ele pareceu rir desse show dantesco, num quadro onde todos viam o constrangimento público de uma empresa-senhora, com quase oito décadas de existência e que faturou no ano passado mais de R$ 8 bilhões.

A sede de mídia que alimentou Zylbersztajn nos seus sete meses de gestão é assustadora. Na última quinta-feira, através da sua assessoria contratada, convidou alguns jornalistas especializados em aviação para uma conversa no salão Ícaro, na sede da empresa no Rio de Janeiro. O papo deixou atônitos os que participaram. Nada novo foi comunicado. Os seus factóides, que não resistiam 24 horas e irritavam profundamente Omar Carneiro, quase o fez ser riscado como fonte de credibilidade na imprensa. Quatro horas depois explodiu a bomba do balanço negativo e do prejuízo acumulado de R$ 778 milhões. Nada havia sido dito sobre isso. Vinte quatro horas depois a guilhotina foi acionada e a sua cabeça cortada.

Enquanto isso, na sua casa na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, o comandante Carlos Luiz Martins assiste com pesar o estrago feito pelos seus sucessores. Ele sabe que desta vez eles não foram vítimas do sentimento antropofágico da Fundação, que acaba devorando os seus filhos mais ilustres. Os notáveis são vítimas de um vôo de Ícaro (ironicamente um dos símbolos da empresa), que teve as suas asas derretidas por conta da falta de bom senso. O prejuízo de R$ 778 milhões teve um efeito solar para acabar com o delírio deste vôo cego.

*Presidente da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo, membro do Conselho Nacional de Turismo e presidente do Jornal de Turismo