Título: Confisco
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 27/11/2005, Internacional, p. A8

A temperatura da campanha eleitoral presidencial na Bolívia subiu essa semana, com o candidato líder das pesquisas de intenção de voto, Evo Morales, acusando os Estados Unidos de retirar clandestinamente do país 28 mísseis anti-aéreos HN-5, de fabricação chinesa - os mesmos usados pela insurgência iraquiana para derrubar helicópteros americanos.

O presidente Eduardo Rodríguez e o comandante do Exército, general Marcelo Antezana, sustentaram que os mísseis - a única defesa que a Bolívia tinha contra um eventual ataque aéreo - foram destruídos dentro do país, por tratar-se de material ''perigoso e obsoleto''.

- Era um arsenal importante, num eventual contexto de conflito com o Chile, pela saída boliviana ao Oceano Pacífico - afirma o historiador Osvaldo Coggiola, da Universidade de São Paulo (USP), especialista em política boliviana.

Durante a semana, o ministro da Defesa, Méndez Gutiérrez, foi interpelado pelo Congresso e descobriu-se que a versão de Rodríguez e Antezana era mentirosa. Os HN-5 foram entregues a militares americanos entre 2 e 4 de outubro, na base aérea de El Alto e levados para a base Mariscal Estigaribia, no Paraguai - oficialmente utilizada pelos EUA para ''fins humanitários'' no território paraguaio, sem propósito de intervenção nos países vizinhos - em um avião C-130 da Força Aérea americana. Posteriormente, foram transportados a bases do Pentágono para serem desativados.

O que, no mínimo, foi um erro, aponta o deputado independente Juan José Torres. O político tem provas de que o arsenal não estava obsoleto: foi fabricado em 1994 e tinha vida útil de 20 anos. Ou seja, só ficaria inutilizável daqui a nove anos.

No Congresso, Gutiérrez afirmou que os mísseis ficaram irremediavelmente danificados devido à ''umidade do Altiplano''. Especialistas apontam mais uma mentira: o Altiplano é uma das regiões mais secas do planeta. Então, por que a Bolívia entregou aos EUA o principal elemento de defesa nacional, cuja estratégia é contar com um sistema de mísseis dissuasivos de defesa antiaérea?

A resposta oficial é ''por razões de segurança nacional''. Há relatos de que a Casa Branca vinha pressionando pela entrega dos mísseis desde o governo de Carlos Mesa. O que nenhuma autoridade respondeu foi se a administração Rodríguez sofreu algum tipo de ameaça ou chantagem. Mas sabe-se que em março de 2004, representantes dos EUA falaram com o então ministro da Defesa, Gonzalo Arredondo, que convocou uma reunião para definir uma posição sobre o futuro do arsenal. O alto comando do Exército se opôs ao pedido de entrega dos mísseis, argumentando que era o único material operativo estratégico que La Paz possuía.

- A verdade é que Washington não acredita que nós, bolivianos, sejamos capazes de guardar com cuidado nosso material bélico, que poderia terminar nas mãos de terroristas ou algo do gênero. Os americanos, inclusive, temiam que as mobilizações sociais invadissem os quartéis e levassem as armas. Agora, a suscetibilidade deles aumentou, diante de um possível triunfo de Evo Morales nas eleições de 18 de dezembro - explicou um ex-chefe militar ao jornal argentino Página 12

- A Bolívia está entre o que Washington denomina como Estados falidos, sem direito a possuir armas - acrescenta ao JB, de La Paz, o analista militar Juan Ramón Quintana.

Após a interpelação, os deputados aprovaram, com 42 votos a favor e 36 contra, uma censura ao ministro Gutiérrez, ''pelos graves erros cometidos na entrega dos mísseis chineses aos EUA''. Também reclamaram de não terem sido consultados sobre a crucial medida e informados de que o governo tenha mudado a estratégia de defesa do país, como aparenta.

Bem mais crítico, Evo Morales pediu a cassação do presidente Rodríguez, ''por alta traição à pátria''.

Outra informação que causou revolta entre os bolivianos é a de que, depois de inutilizados, os mísseis serão devolvidos à Bolívia. Detalhe: o custo do transporte sairá do bolso por conta de La Paz.

- Só pode ser brincadeira. Para que gastar com a reimportação de um material desativado? Será que alguém vai abrir um museu dos fracassos bolivianos? - provocou o analista político Andrés Solíz Rada.

- É uma prova da falta de soberania da Bolívia, à qual contribuem as Forças Armadas. Na prática, admitiram que somos um Estado falido - conclui Quintana.