Título: Além do Fato: O que esconde o duelo de Chávez e Fox?
Autor: André Luiz Coelho e Fidel Flores
Fonte: Jornal do Brasil, 27/11/2005, Internacional, p. A9

O recente conflito diplomático entre México e Venezuela reflete, na verdade, um confronto entre duas visões distintas da dinâmica de integração regional, como ficou claramente demonstrado nas discussões durante a IV Cúpula das Américas, realizada no início deste mês, em Mar del Plata, Argentina. Uma privilegia o livre comércio e o acesso ao mercado americano como mecanismo de desenvolvimento econômico, enquanto a outra entende que a integração deve ser fortalecida, primeiramente, entre os países do Sul e procura ultrapassar o plano da liberalização comercial. Com a insistente defesa do presidente mexicano Vicente Fox para que a reunião da Cúpula acabasse com um claro compromisso para acelerar a entrada em vigor da Área de Livre Comércio para as Américas (Alca), criou-se um clima de desentendimento com o presidente argentino, Néstor Kirchner, e o venezuelano, Hugo Chávez, que, após seguidas trocas de desqualificações, chegou ao ponto de chamar seu homólogo mexicano de ¿filhote do Império¿.

Os países do Mercosul, junto à Venezuela, evitaram se comprometer com a Alca até que a polêmica questão dos subsídios agrícolas possa ser discutida no próximo encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Hong Kong. A irritação apoderou-se dos dois lados, e a Cúpula acabou sem compromisso para a Alca. A querela entre México e Venezuela chegou ao seu ponto máximo com a retirada dos respectivos embaixadores, deixando as relações diplomáticas à beira da ruptura total.

O México definiu sua política econômica e comercial dos últimos anos a partir da criação do Nafta, um acordo de livre comércio com os Estados Unidos e Canadá, em vigor desde 1994. Desde então, já assinou termos deste tipo com 43 países, só perdendo na América Latina para o Chile, que é signatário de tratados similares com 50 nações. Porém a relação mais importante é com os Estados Unidos, já que representa cerca de 90% do comércio exterior mexicano. Ao mesmo tempo, Washington lançou uma proposta de liberalização comercial para o continente, a Alca, que começou suas negociações na primeira Cúpula das Américas, ocorrida em Miami em 1994, com a participação de todos os países exceto Cuba.

Nos últimos anos, os Estados do Mercosul, em coordenação com outros parceiros sul-americanos, vêm desenvolvendo uma agenda de complementação econômica que abrange, além da abertura nos fluxos comerciais, mecanismos de cooperação no âmbito energético, de infra-estrutura, comunicações, ciência e tecnologia, bem como a construção de instituições políticas comuns. É nessa linha que se insere a criação, em dezembro de 2004, da Comunidade Sul-Americana de Nações, onde participam os 12 países da América do Sul. Em resumo, trata-se de uma visão que privilegia o desenvolvimento regional no Sul antes da adoção de estratégias de crescimento econômico baseadas na ampliação dos fluxos com o mercado norte-americano.

Na década anterior, praticamente a totalidade dos presidentes latino-americanos concordava que a promoção de acordos de livre comércio seria o melhor caminho a ser tomado. Com a chegada ao poder de críticos desse modelo, como Chávez e Kirchner, já não há a mesma disposição para a assinatura deste tipo de acordo e ocorreu uma mudança nas prioridades da agenda regional. Por isso, o tema escolhido como vetor da cúpula foi a criação de empregos e não a negociação da Alca. O bloco formado pelo Mercosul e pela Venezuela é uma clara demonstração de que estes países não pretendem aceitar uma Alca em que saiam perdedores e desejam uma negociação mais equilibrada, sem descartar a construção de novas alternativas.

A princípio, o presidente mexicano não teria muitos motivos para impulsionar a retomada da agenda do livre comércio nos foros regionais, pois há quase 12 anos o México já participa desta dinâmica. Vicente Fox não é o único presidente latino-americano favorável a uma rápida retomada das negociações para que a Alca se concretize em breve, basta lembrar que mais 28 países presentes em Mar del Plata tinham intenções semelhantes. No entanto, Fox acabou assumindo a liderança do grupo pró-Alca, fortalecendo assim a percepção do alinhamento mexicano com Washington. Essa postura responde a uma autêntica convicção ideológica que o coloca em sintonia com a visão de que a ampla abertura comercial é fator de prosperidade econômica, embora no seu próprio país não sejam poucas as vozes que alertam para a perigosa dependência que a alta concentração do fluxo comercial com uma só nação, no caso, os Estados Unidos, significa.

Em contrapartida, o posicionamento ideológico de Chávez, que proclama a construção do socialismo do século 21, o separa politicamente cada vez mais dos EUA e o aproxima de movimentos de esquerda, que vêm intensificando sua atividade no continente. Não obstante, é importante lembrar que a maior parte da produção de petróleo venezuelano é vendida para o mercado americano. Na semana passada, Chávez chamou Bush de assassino, genocida e louco ao responder suas acusações de que estaria minando a democracia no continente. Por outro lado, o presidente venezuelano avança nas alianças com a parte Sul do continente. Prova disso é a iminente entrada da Venezuela no Mercosul e o estreitamento das relações comerciais e estratégicas com a Argentina.

Na última semana, em uma reunião em Puerto Ordaz, Venezuela, Kirchner e Chávez assinaram uma série de acordos, dentre os quais destaca-se a construção de um gasoduto que fará a ligação entre esses dois países, a um custo de estimados US$ 4 bilhões. Também foram assinados pactos de integração na área de tecnologia nuclear e foi ratificado o compromisso do governo venezuelano de continuar comprando bônus da dívida argentina. Por sua vez, Kirchner apóia a entrada da Venezuela no Mercosul.

Configura-se então um panorama regional de dois blocos que direcionam seus esforços de integração sob pressupostos diferenciados e nem sempre convergentes. No entanto, esses blocos não são homogêneos nem respondem a um alinhamento fechado e definitivo sobre as alianças que constroem. O Brasil e a Argentina, por exemplo, estão longe de mostrar o distanciamento venezuelano em relação aos Estados Unidos, como o demonstra a visita de Estado que Bush fez a Brasília depois da Cúpula ou o apoio dado por parte do presidente norte-americano para que Argentina retome negociações com o FMI. Outros países, como a Bolívia ou a Nicarágua, podem mudar de lado num futuro próximo em decorrência de possíveis mudanças na política interna.

O próprio México levanta discretas incertezas a respeito das mudanças na condução da política externa que poderia trazer uma eventual chegada ao governo de um partido de centro-esquerda, o Partido da Revolução Democrática (PRD), cujo candidato é grande favorito para vencer as eleições presidenciais em 2006. Hugo Chávez, ciente dessa possibilidade, não desperdiçou a oportunidade de louvar seus amigos no PRD e assegurar que num futuro próximo será formado um eixo Cidade do México-Caracas-Buenos Aires. O conflito Fox-Chávez abriu, assim, um espaço para a entrada do venezuelano no debate eleitoral mexicano. Ao mesmo tempo, as eleições legislativas da Venezuela, que serão realizadas no próximo domingo, devem assegurar uma cômoda vitória dos candidatos governistas.

O conflito parece que não tomará maiores proporções do que já tomou. Com a diminuição do tom do discurso de ambos os lados, as relações comerciais entre esses países, que já não são grandes, não devem ser afetadas. Para além deste episódio diplomático, as posturas de México e Venezuela denotam o confronto entre duas visões distintas sobre que política deve ser adotada para a América Latina.

De um lado, a promoção do livre comércio e de um maior alinhamento com os Estados Unidos; do outro, a busca por uma integração regional mais abrangente entre países do Sul, que procuram alternativas ao caminho percorrido nos anos 90, alvo de severas críticas de setores expressivos dos países envolvidos.