O Globo, n. 32538, 07/09/2022. Opinião, p. 2

Brasil tem muito a celebrar no Bicentenário



A celebração do Bicentenário da Independência marcada para hoje contará com uma montagem cênica do grito de Dom Pedro I no Parque da Independência, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, perto de onde ele deu o grito de “independência ou morte” há 200 anos, ao lado do museu recém-reformado. No Rio, a comemoração da efeméride deverá ocorrer perto do Forte de Copacabana. Em várias outras capitais e cidades brasileiras estão previstas homenagens. Mesmo considerando todas as festividades, o conjunto ficará aquém do que deveria.

O principal motivo é a apropriação do 7 de Setembro e das cores da bandeira por uma facção política, o bolsonarismo, que afastou a maioria da população. Num eco dos atos golpistas que promoveu na data nacional no ano passado, o presidente Jair Bolsonaro convocou para hoje uma série de manifestações de sua campanha à reeleição, com a indefectível “motociata” e todo o kit que mobiliza seu eleitorado mais fanático (a novidade será uma “jet skiata” em Copacabana). Diante do perfil belicoso e do culto às armas entre os bolsonaristas, o simples temor de confrontos e atos violentos contribui para manchar uma data em que, apesar de tudo, o país tem muito a celebrar.

Os 200 anos de uma nação como o Brasil merecem exaltação. Em 1822, éramos 4,7 milhões concentrados numa pequena faixa de terra junto ao litoral. Hoje a população gira em torno de 215 milhões, a quinta maior do mundo, espalhada por todos os pontos do território nacional. Em dois séculos, o país evitou o esfacelamento dos vizinhos da América Latina, acabou com a injustiça e a vergonha da escravidão, hospedou milhões de imigrantes de todos os continentes, integrou-se com base no idioma comum herdado dos portugueses, enriquecido com as contribuições milionárias africana, indígena e tantas outras. Construiu uma cultura própria, admirada no mundo todo, de excelência reconhecida em todos os campos artísticos, para não falar no futebol e nos esportes.

Integrar um país de dimensão continental não foi tarefa simples. Até o começo dos anos 1970, nas viagens entre as capitais do Sudeste e do Sul, os veículos eram obrigados a trafegar pela praia. Grandes investimentos em infraestrutura ligaram todos os pontos do país, garantiram a produção de eletricidade limpa, serviram de base à expansão da indústria. Ao mesmo tempo que se tornava uma potência agrícola, o país foi paulatinamente deixando de ser rural.

Hoje o Brasil está entre as dez maiores economias do mundo. Tem empresas que constroem aviões, motores elétricos, explora petróleo, fabrica carros e domina dezenas de setores de negócios. Somos os maiores exportadores mundiais de soja, café, suco de laranja, açúcar, carne de frango e bovina. Em milho, o terceiro, em carne suína, o quarto. Toda essa atividade econômica foi lastreada por investimentos pesados em pesquisa. Sete das dez melhores universidades da América Latina estão no Brasil, segundo levantamento recente da revista Times Higher Education.

Problemas que pareciam insolúveis, como hiperinflação e dívida externa, ficaram para trás. Outros que pareciam prestes a ser resolvidos, como fome e desmatamento, infelizmente voltaram. É evidente que os desafios para os próximos 200 anos são gigantescos. O mais urgente é construir um consenso político que permita ao país voltar a crescer de modo sustentável, capaz de gerar riqueza para toda a população. É a melhor resposta para combater pobreza e desigualdade. Muito já foi feito para aprimorar as áreas de educação e saúde, mas muito mais resta por fazer.

Num país em que o arcabouço institucional ainda deixa a desejar e em que o capital ainda é insuficiente para os investimentos necessários ao crescimento, vencer tais desafios passará inevitavelmente pela redefinição do papel do Estado, hoje tomado de assalto por grupos de interesse específicos que precisam ser combatidos. A melhor forma de garantir o consenso necessário para isso é a democracia, uma conquista de poucas décadas apenas.

Ao contrário do que imaginam aqueles que tentam solapá-la com o discurso fácil, infantil e sedutor dos salvadores da pátria, não há atalhos. Divergências são intrínsecas à política. É apenas com o diálogo, o confronto de ideias e a disputa pelo voto que a sociedade brasileira conseguirá superá-las para obter novas conquistas. E só assim chegará perto da meta tão bem descrita nas palavras célebres de Dom Pedro I: "o bem de todos e a felicidade geral da nação".