Valor Econômico, v. 20, n. 4967, 25/03/2020. Opinião, p. A14

Quantos morreremos?

Edvaldo Santana


Freeman Dyson, físico e matemático inglês morto em 28 de fevereiro deste ano, aos 96 anos, era tido como um cientista rebelde. Influenciou uma corrente significativa de pesquisadores, de todas as áreas. Em “Infinito em todas as direções”, Dyson traça um paralelo entre a exploração geográfica e a Física. George Everest, por exemplo, explorava os picos das grandes montanhas. As selvas que encontrava eram meros pontos de passagem. A Teoria da Relatividade, de Einstein, e as equações do campo eletromagnético, de Maxwell, eram os grandes cumes da Física, que dominaram os estudos por quase 100 anos. A relação disso com a catástrofe provocada pela Covid-19 é educativa, apesar da trágica. Vejam este meu caso.

Sou de uma família pequena. Meus pais não tinham irmãos. Tiveram. Mas não completaram 2 anos. Nasci antes do desenvolvimento da vacina contra a poliomielite. Na época, a expectativa de vida era 44 anos. A vacina contra o sarampo só foi introduzida no Brasil na década de 60, quando eu já tinha 7 anos. Sou o mais novo de quatro irmãos, o mais velho fará 80 anos em 2020. Minha mãe fará 96 anos. Quando nasceu, a esperança de vida não passava, creiam, de 38 anos.

Somos, portanto, cinco pessoas que cruzaram boa parte da vida sob riscos não desprezíveis de contraírem moléstias graves. Sobrevivemos. Somos fruto da ciência, da evolução, dos vários cumes superados, mesmo que alguns não acreditem. No cenário atual, contudo, nós cinco seguimos como parte de um subconjunto especial, de elevado ou elevadíssimo risco longe de ser o principal problema. Com mais ou menos mortes a pandemia passará, quem sabe ainda este ano.

A pandemia pegou o mundo em cruel déficit de líderes e, sobretudo, de estadistas. Talvez reste a Angela Merkel, premier da Alemanha. É provável que jamais tenhamos um Franklin D. Roosevelt. Como presidente dos

Estados Unidos depois da crise de 1929, FDR liderou um programa mundial de recuperação econômica e social, o New Deal. Teve quatro mandatos. No Brasil, Juscelino Kubitschek foi o último estadista. Estamos há mais de 60 anos sem um deles. Nas eleições, escolhemos entre os “menos piores”, isto é, maximizamos a mediocridade. Lastimável.

Mesmo antes de ser transformada em pandemia, segmentos importantes da economia, em todo o mundo, interromperam suas atividades, no mínimo parcialmente. Desde janeiro, com a China a cambalear, os Estados Unidos na linha de tiro e a Europa em nocaute, a demanda por produtos e serviços reduziu abruptamente. Os efeitos disso já estão presentes no Brasil. Estamos na corda bamba, sem cinto de segurança.

As autoridades, mesmo as que mostram bons desempenhos técnicos, não se dirigem corretamente à população. Um exemplo é o ótimo ministro da Saúde. Recentemente, em rede nacional e ao vivo, ele dizia, com ênfase: “Cuidem dos seus velhos, dos seus idosos”; “protejam seus idosos, seus avós e seus pais”; “o resultado dependerá de vocês”. Coisas semelhantes foram ditas pelo governador de São Paulo e os especialistas que o acompanhavam.

A mensagem fica ambígua. A diarista, ao assistir esperançosa a tudo isso, falou de pronto: lascou-se! Entregaram à própria sorte! Na interpretação dela, a frase soa assim: se vocês não protegerem seus idosos, aqui, no sistema de saúde, eles não terão guarida. Estarão no corredor da morte. A esperança foi transformada em medo. A forma de dizer e de comportar-se separa o líder nato do líder de plantão. O líder nato diria: farei de tudo para proteger nossos idosos, mas preciso muito do empenho de vocês. Faz toda diferença.

E o líder lidera com exemplos. Faz antes, para mostrar comprometimento. O presidente de Portugal, que esteve em contato com pessoa suspeita de ter contraído o novo vírus, imediatamente entrou em quarentena voluntária. Na época, Portugal não tinha qualquer caso confirmado.

A resposta da população aos chamados dos governantes poderia ser outra se o presidente Bolsonaro entrasse em quarentena voluntária assim que chegou dos Estados Unidos. Na crise que estamos, o faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço desvia as atenções. A pandemia, com seus trágicos efeitos sobre a economia, não “acabará com meu governo”. Ela abalará nossas esperanças. É assim que deveria ser passada a mensagem. Do contrário, parece a política de farinha pouca, meu pirão primeiro, que acentua a crise.

E não saber o que informar também resulta em políticas públicas e incentivos imprecisos e inadequados. No dia 22 de março, o Brasil tinha 1.201 infectados pelo novo coronavírus. Desses, 459 estavam em São Paulo (SP), 119 no Rio de Janeiro e 112 no Distrito Federal (DF). São Paulo era o Estado em situação mais crítica, certo? Errado. Muito errado.

O Distrito Federal é o pior caso e apresenta um cenário muito preocupante. (Não poderia ser diferente. Só na cúpula do poder já são 22 casos, e com origens conhecidas). Como a população do DF é 15 vezes menor que a de SP, 112 corresponderiam a 1.700 infectados em SP, se quisermos tratar adequadamente os efeitos da síndrome. Nestas circunstâncias, se comparados os números corretamente, o DF tem, em termos relativos, quatro vezes mais casos que SP, e isto deveria importar para efeitos da definição de prioridades e de medidas a serem adotadas.

E há vários agravantes. Os casos do DF estão concentrados no Plano Piloto, onde a população é cerca da metade de todo DF. Ali, onde vive camada de renda mais elevada do Brasil, as moradias têm doméstica(o) e diarista, o que facilita a propagação para a população mais pobre - das cidades satélites e seus contornos. Passam por Brasília quase todos os voos que vão do Sul e Sudeste para o Norte e Nordeste, com a circulação indesejável de pessoas fora e dentro do aeroporto, mesmo que os voos  estejam com 50% da ocupação. Não lembro de ter ouvido nas frequentes entrevistas coletivas se as estratégias de combate estão a levar em conta a gravidade relativa das unidades da federação.

Como sair de tamanha catástrofe, como a desenhada pela covid-19, sem uma coordenação mundial e nacional? Apesar das boas intenções, a tática tem sido a tentativa e erro, com mais erros. Batemos cabeças, e boas cabeças. Sobram o afastamento social e o fechamento de fronteiras. Se esse isolamento durar mais de 90 dias, os efeitos serão inimagináveis. A quebradeira, o desemprego e a fome serão inéditos.

Perdidos nas selvas empestadas pelo novo coronavírus, o clima entre os governantes é desanimador. Proliferam as intrigas e interesses comezinhos. Muitas empresas e negócios morrerão e deixarão uma moléstia social só vista durante grandes guerras. E com ela padecerão também as esperanças, se é que alguém ainda as tinha. Como a vacina, torço para o surgimento de um grande estadista, aqui e acolá. Oxalá dessa crise desperte alguém. Faz muita falta.

Edvaldo Santana é doutor em Engenharia de Produção, professor titular aposentado da UFSC e ex-diretor da Aneel