Título: Utopia, democracia e política
Autor: Emir Sader
Fonte: Jornal do Brasil, 27/11/2005, Outras Opiniões, p. A11

A crise atual afeta não apenas o governo e o PT, mas a própria prática política. Seja nas caricaturas, seja nas colunas de jornais ou em declarações tomadas de gente pela rua ou na disposição de voto nulo em pesquisas, retorna com força a desmoralização dos ''políticos'' e da ''política''. O desgaste da imagem de Lula e do PT é acompanhado do desgaste daqueles que movem as acusações no Congresso, que têm igualmente sua imagem afetada e dos próprios partidos. Duas décadas depois do fim da ditadura, o que pode significar isso? Quem ganha e quem perde com isso? O que se coloca no lugar da ''política''?

O impulso democrático da luta contra a ditadura teve na campanha pelas eleições diretas seu momento culminante. Sua derrota representou que a oposição ditadura/democracia deixava de comandar a vida política, porque o Colégio Eleitoral não levou à Presidência aquele que provavelmente teria sido eleito pelo voto direto - Ulysses Guimarães - e o PMDB como partido, mas uma coligação entre esse partido e forças que haviam apoiado a ditadura militar - o recém fundado PFL -, o que teve como primeiro efeito o deslocamento de Ulysses para o moderado Tancredo Neves e, com a morte deste, para o egresso do antigo regime, José Sarney. A saída da ditadura não significava a vitória das forças democráticas, mas de um híbrido entre o velho e o novo, representado pela aliança PMDB-PFL e pelo governo Sarney.

Foi um primeiro desgaste da ''política'', no sentido de que a democratização política não democratizou o Brasil: seguimos sendo a sociedade mais injusta do mundo, não foram afetados os poderes que se haviam fortalecido durante a ditadura - os monopólios da terra, das grandes corporações, dos bancos, da grande mídia. Ao contrário: ao não se realizarem as reformas econômicas sociais pregadas pelo programa do próprio PMDB, e ao se caracterizar a corrupção nas práticas políticas do primeiro governo civil - recordemos a distribuição de emissoras de rádio e TV pelo Brasil afora por ACM, para ficar apenas em um dos casos de corrupção -, Collor se erigiu por fora dos partidos e supostamente da ''política'', para triunfar. Claro que isso dependeu também do medo que as elites beneficiárias da continuidade entre o velho regime e o novo tinham de Lula e do PT, para jogarem-se nos braços de um aventureiro que prometia ''sanear'' o Estado dos ''marajás'' e livrar o Brasil das ''carroças'' da indústria automobilística.

O impeachment de Collor e a campanha pela ética na política revigoraram em certa medida a prática política. Porém, em pouco tempo, a prioridade dada ao ajuste fiscal, retomada a política econômica de Collor por FHC, levou à crítica do Estado e à prioridade absoluta dos ministérios econômicos - apesar daquela imagem da mão espalmada dizendo que os ministérios mais importantes de seu governo seriam os sociais -, assestando duro golpe à prática política.

O ''pensamento único'' que passou a habitar em cheio as páginas dos jornais e o privilégio que as colunas e editorias econômicas passaram a ter na mídia tratam de fazer da política a esfera da irracionalidade, porque sensível a reivindicações sociais, enquanto a racionalidade residiria na fria lógica econômica dos ajustes fiscais. As reivindicações dos parlamentares apareciam sempre como interesses pessoais, as reivindicações dos sindicatos e dos movimentos sociais como temas corporativos, enquanto a lógica geral respousaria apenas na racionalidade financeira do Banco Central e do Ministério da Fazenda.

Essa lógica levou ao desprestígio de FHC e dos tucanos, reduzidos a simples agentes políticos do capital financeiro e do interesse dos bancos e das grandes empresas que lucraram com as escandalosas privatizações. A crise do PT não começou com as denúncias atuais, mas com a manutenção do modelo e da lógica herdada do governo FHC. Independentemente de que o governo Lula seja incomparavelmente melhor que o de FHC na política externa, que tenha parado o processo de privatizações, que não criminalize e reprima os movimentos sociais, que tenha outros méritos mais - sua lógica seguiu privilegiando o ajuste fiscal e os ministérios econômicos em detrimento da prometida prioridade do social.

A nova onda de desmoralização da política favorece aos chamados ''mercados'', por detrás dos quais se escondem, antes de tudo, o capital especulativo e as grandes corporações econômicas voltadas para a exportação e o consumo de luxo e não para o combate às injustiças sociais, para distribuição de renda, para a ampliação do mercado interno, para a universalização dos direitos. Quem conseguir resgatar estas bandeiras - o próprio PT, renovado, ou outra força política anti-neoliberal - terá avançado no resgate da utopia, da política e da democracia. Do contrário, se fortalecerão os que produzem e reproduzem o Brasil injusto, violento e desumano que devemos prioritariamente combater.