Título: O 'Bushevique'
Autor: Rozane Monteiro
Fonte: Jornal do Brasil, 27/11/2005, Internacional, p. A14

O presidente americano, George Bush, vive a repetir que tem a missão - dada por Deus, pessoalmente - de difundir a democracia a todos os que ainda não conheceram, segundo ele, a única ideologia possível. Os seguidores de Vladimir Ilyich Lênin, líder dos bolcheviques, que levaram à União Soviética à Revolução de 1917, não faziam questão dessa intimidade com Deus, mas estavam certos de que seu movimento era a ordem natural das coisas em todo o planeta.

Um prega o regime que dá ao povo, em tese, o direito absoluto à escolha de suas lideranças e à liberdade em todos os sentidos. Os outros falavam de ditadura, ainda que do proletariado. Historicamente em lados opostos do pensamento político, Bush e os bolcheviques de Lênin estão, segundo especialistas russos, mais próximos um do outro do que ousaram imaginar os chamados neo-cons, ideólogos da Casa Branca de hoje, e os próprios saudosistas do que um dia foi a União Soviética. Um golpe no fígado do conceito de democracia pregado pelo presidente republicano.

- É preciso deixar claro que há entre os dois, Bush e os bolcheviques de Lênin, uma diferença ideológica evidente. Mas é possível traçar um paralelo entre as práticas de ambos. Bush está convencido de que o mundo inteiro é regido por um desejo por liberdade e por democracia, ignorando as características específicas das diferentes nações. Os bolcheviques estavam certos de que a revolução do proletariado deveria acontecer em todas as sociedades - analisa o historiador russo Igor Torbakov, PhD em História da Rússia e do Leste Europeu, em entrevista por telefone ao JB.

Torbakov chama a atenção para o fato de Bush, como fizeram os bolcheviques, se empenhar, às vezes pela força, em impor sua ideologia na forma como a compreende.

- O presidente americano não leva em conta que há modelos diferentes de democracia, e não só o seu, que é o anglo-saxão adaptado à realidade americana. Não vê que, por exemplo, França, Itália e Espanha têm modelos democráticos próprios. Muito menos considera que a chamada Nova Europa, os países que aderiram à União Européia em 2004, desenvolveram, por necessidade, um modelo distinto de democracia. O irônico é que, quanto mais inflexível Bush é, tanto mais se aproxima dos bolcheviques - acrescenta o historiador, lembrando nações da extinta Cortina de Ferro, agora parte da UE.

Há, ainda, o fato, segundo Torbakov, de a ideologia de Bush não fazer sentido para os povos de países islâmicos, de tradições seculares que não cabem no conceito moderno de democracia:

- Se você for falar de liberdade de expressão para esses povos, eles não vão ter nenhuma idéia de por que, afinal de contas, precisam tanto dessa tal liberdade. Não faz sentido na cabeça deles. Simplesmente, não entendem porque as coisas têm de ser da forma como Bush diz. Aqui, de novo, se você pensar que os EUA estão dispostos a disseminar seu modo de governar para todo o mundo, é preciso lembrar que também os bolcheviques planejavam levar a revolução do proletariado para fora das fronteiras da União Soviética.

Outro analista russo, Aleksander Tsipko, em artigo recente, corrobora a tese de Torbakov e chega a dizer que o principal ponto comum é a máxima ''os fins justificam os meios''. E, por trás dessa lei aplicável aos métodos de Washington, ainda segundo Tsipko, ''está o mesmo sistema ético bolchevique que classifica como moral tudo o que serve a seus interesses e a mesma indiferença com o valor da vida humana''.

Tsipko também se refere ao próprio Iraque, onde Torbakov se arrisca a usar o conceito de revolução:

- É claro que os ideólogos vão sempre resistir a usar o termo ''revolucionária'' ao se referir a qualquer de suas ações. Mas, se pensarmos que naquele país, onde havia uma ditadura, agora há eleições, é ou não é uma revolução?

Torbakov lembra, ainda, do recém criado ARC, a sigla em inglês para uma força-tarefa ligada ao Departamento de Reconstrução e Estabilização da Casa Branca, passível de ser deslocada para qualquer lugar do mundo em que esteja acontecendo uma transição política. ''Para ajudar jovens democracias a obter êxito e construir a liberdade, precisamos dos esforços de vários indivíduos e instituições'', já disse Bush, em discurso, referindo-se ao ARC.

Hoje, na Rússia, não são raros os que comparam o ARC de Bush ao Cominterm, o braço internacional do Partido Comunista, de difusão da ideologia para fora do território soviético.

Mas é na forma como Bush se apresenta como um enviado de Deus que a semelhança com os métodos bolcheviques fica ainda mais irônica. Especialmente depois de o presidente americano ter dito, em 2003, durante encontro com autoridades palestinas: ''Sou guiado por uma missão dada por Deus. Deus me disse: 'George, vá e lute com aqueles terroristas no Afeganistão'. E eu fui. Então, Deus me disse: 'George, vá e acabe com a tirania no Iraque'. E eu fui. Agora, de novo, eu sinto as palavras de Deus vindo em minha direção: 'Vá e dê aos palestinos o seu estado; a Israel, a sua segurança; e leve a paz ao Oriente Médio. Por Deus, é isso que vou fazer''.

- Primeiro, é preciso dizer que existir um homem que acredita ter uma missão, tem a certeza de ter ouvido um ''chamado'' e crê conversar com Deus é assustador e perigoso. Mas, por irônico que possa parecer, isso também é muito bolchevique. Na época do 11 de setembro, Bush disse algo como 'ou vocês estão conosco, ou contra nós'. Ele continua com esse tom maniqueísta. Os ideólogos de Bush e pessoas como os bolcheviques de Lênin só vêem o mundo em preto e branco. Lembre-se também que Lênin transformou sua doutrina política numa espécie de religião, e as massas a absorveram como se fosse um dogma. Não havia meio-termo. A revolução do proletariado deveria ser, segundo os bolcheviques, a 'ordem natural das coisas' e levaria a humanidade a um mundo de mais justiça - conclui Torbakov.