Valor Econômico, v. 20, n. 4967, 25/03/2020. Legislação & Tributos, p. E2

Coronavírus e as fiscalizações tributárias

Daniel Vitor Bellan


O agravamento da crise relacionada ao coronavírus levou a maioria das empresas a reduzir ou alterar suas atividades, incentivando-se o home office de funcionários como forma de se reduzir o contato social e, por consequência, a disseminação da doença.

A real efetividade destas medidas só será conhecida nas próximas semanas. Torcemos, claro, para que elas tenham sucesso. Enquanto isso, o mundo jurídico começa a pensar nos efeitos e impactos do tal vírus. De minha parte, notei que a pandemia não pediu licença às autoridades tributárias brasileiras.

Há uma série de obrigações fiscais cujo prazo encontra-se em curso, tal como a entrega da declaração de Imposto de Renda de pessoas físicas. Ainda que se cogite estender o prazo (tal como já ocorreu nos EUA), a verdade é que a rápida entrega da declaração é até mesmo do interesse dos próprios contribuintes, especialmente aqueles que têm restituição receber.

Do lado das empresas, há a questão do Sped (escrituração contábil e fiscal) e também das fiscalizações tributárias em curso, muitas com prazo de resposta em aberto. É comum uma mesma empresa enfrentar múltiplas fiscalizações tributárias simultaneamente, vindas de diferentes órgãos federais, estaduais e municipais. Isso normalmente já é um desafio no dia a dia empresarial.

A novidade é que as restrições e contratempos relacionados ao coronavírus podem dificultar ou até mesmo impedir a apresentação de documentos e informações solicitados por autoridades tributárias em fiscalizações.

É verdade que houve um rápido movimento das autoridades fiscais diante da nova crise (o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais suspendeu as sessões de julgamento e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional prorrogou a validade das CNDs). No entanto, no âmbito da

Receita Federal, a Portaria nº 543, do último dia 20, apenas restringiu o atendimento pessoal em suas unidades, mantendo o órgão em funcionamento. Para algumas atividades ainda se admite inclusive o atendimento pessoal!

Embora tenha havido suspensão dos prazos processuais (prazos legais de apresentação de defesa ou recurso em processo administrativo) até 29 de março (artigo 6º), uma leitura cuidadosa levanta dúvidas quanto a aplicação deste dispositivo também para as fiscalizações, que são, tecnicamente um procedimento pré-processual (já que não envolvem ainda um litígio propriamente dito). Isso pode parecer um exagero, mas a própria portaria emprega também a expressão “procedimento” no artigo 8º, ao se referir à atividade de malha fina, por exemplo. Provavelmente não foi a intenção das autoridades fiscais manter em curso os prazos de fiscalização, tendo sido isso o resultado da rápida edição da no como as circunstâncias exigiam.

Esta mesma preocupação vale para a recém editada Medida Provisória nº 928, do dia 23, que, ao suspender prazos, também empregou a expressão “processos administrativos”.

Como o não atendimento adequado das solicitações pode ter por efeito o agravamento de penalidades, recomendamos atenção especial ao tema. Na esfera federal, por exemplo, o contribuinte que não colabora adequadamente com o Fisco por ter a penalidade aumentada para 112,5% do tributo que vier a ser exigido (a multa normal em autuações fiscais para contribuintes que colaboram é de 75%).

As fiscalizações tributárias normalmente já comportavam pedidos de prorrogação de prazo, especialmente se feitas dentro de parâmetros de razoabilidade (uma ou duas prorrogações, geralmente da mesma extensão do prazo originalmente estipulado).

No entanto, o atual cenário do coronavírus pode demandar a solicitação de prorrogações adicionais. Isso nos parece razoável e pensamos que estas solicitações serão em geral aceitas pelas autoridades fiscais.

Alguns cuidados, porém, devem ser adotados. As solicitações devem sempre ser formalizadas por escrito (atualmente muitos órgãos permitem a entrega on-line, como é o caso da Receita Federal via e-CAC/DTE) e, preferencialmente, fundamentadas. Ou seja, a empresa deve demonstrar de que forma exatamente o atual quadro que enfrentamos está prejudicando a apresentação das informações e documentos (licença ou férias coletivas de funcionários, limitações de TI, escritório terceirizado de contabilidade paralisado etc).

É interessante também indicar qual será o prazo adicional necessário. Prazos muito longos (superiores a 30 dias) podem enfrentar resistência por parte das autoridades fiscais. Casos específicos, porém, que envolvam grande volume de documentos ou apuração complexa, podem demandar prazos superiores.

Ainda que estes pedidos de prorrogação de prazo não venham a ser expressamente respondidos pelas autoridades fiscais (o que infelizmente é comum), sua apresentação é importante porque no final do dia o destinatário final desta solicitação é o órgão julgador que apreciará o eventual agravamento de penalidades (Carf, TIT e, em última instância, o próprio Poder Judiciário).

Este tema certamente será analisado com cautela e razoabilidade pelos tribunais administrativos e judiciais. De toda forma, os cuidados mencionados acima podem contribuir para se evitar maiores problemas ou, ao menos, deixar o contribuinte em melhor situação de defesa e com melhores chances de êxito.

Tal como no próprio enfrentamento do vírus, também nas questões tributárias a ele relacionadas a prevenção parece ser o melhor caminho.

Daniel Vitor Bellan é doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, advogado, sócio de Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados e membro do Instituto de Pesquisas Tributárias (IPT)

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