O Globo, n. 32540, 09/09/2022. Opinião, p. 2

O crime ruidoso acua e compensa

Vera Magalhães


Jair Bolsonaro foi um mestre ao arquitetar o 7 de Setembro e fazer com que ele ocorresse exatamente segundo o que planejou. Mais de um mês antes, disse que a micareta seria na Praia de Copacabana, que favoreceria a mistura proposital dos militares e do povo. Disseram que o Exército não aceitaria, o prefeito Eduardo Paes tentou resistir, mas, no fim, tudo ocorreu como ele designou.

O presidente formulou discursos sem xingamentos, mas cheios de mensagens subliminares, conhecidas como “apitos de cachorro”. Estava lá a ameaça velada de trazer para as tais “quatro linhas” aqueles que estão agindo fora dela, ou seja, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Isso não foi casual, tampouco sinal de moderação, algo impossível no bolsonarismo e no caldo altamente radicalizado que está sendo curtido nas redes — e que deu as caras nas ruas de Brasília e do Rio, nas mensagens presentes em cartazes e guindastes.

Nos dias anteriores aos atos, mensagens nos grupos públicos bolsonaristas de WhatsApp já avisavam aos “patriotas” que não haveria agressões aos ministros do Supremo porque o Judiciário, que seria aliado da esquerda, estaria “provocando” Bolsonaro com atos como a proibição de celulares e armas no dia da eleição, na expectativa de que a reação do presidente ensejasse interpretações de que ele pretende dar um golpe.

Segundo levantamento da pesquisadora Andressa Costa, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, em 14 mil grupos públicos bolsonaristas com mensagens que tiveram mais de 127 encaminhamentos, as narrativas dominantes no 7 de Setembro foram:

1) Enaltecer o tamanho dos atos e seu caráter pacífico e democrático;

2) Ridicularizar e desacreditar as pesquisas, justamente pelo alto comparecimento às manifestações;

3) Dizer que, portanto, a esquerda só ganha a eleição se houver fraude;

4) Insinuar que as fraudes são culpa dos ministros do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com ataques liberados a Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, sem o falso filtro de Bolsonaro;

5) Afirmar que os atos comprovam: Bolsonaro ganhará no primeiro turno;

6) Concluir que as medidas do TSE restringindo celular e armas são para “provocar” Bolsonaro, portanto, os patriotas não podem cair;

7) E que, depois de vencer as eleições, Bolsonaro fará o que precisa ser feito, pois tem “autorização” dos “patriotas”.

O encadeamento é altamente sofisticado e funciona como uma correia de transmissão. Para cada uma dessas mensagens, há uma corroboração nas ações e nas palavras do presidente. Quando ele pede a Deus “coragem para agir”, está se referindo aos itens 6 e 7 que listei.

Uma das mensagens campeãs de compartilhamento é um vídeo de uma entrevista do candidato bolsonarista ao governo de São Paulo, Tarcísio Freitas, em que ele diz que o presidente é “escolhido”, “iluminado” e vencerá já em 2 de outubro.

Quando os crimes eleitorais cometidos por um populista candidato a autocrata são endossados por tão alto comparecimento de um público previamente radicalizado, o resultado é que as instituições têm receio de agir. “Cassar a candidatura de Bolsonaro causaria uma guerra civil no país”, disse à coluna um ministro de tribunal superior.

Portanto a verdade é o oposto do que diz a lavagem cerebral do WhatsApp: é Bolsonaro quem provoca e estressa as instituições, usando a chancela de uma parcela da população como escudo.

Não é diferente de usar a miséria, real e antiga, e transformá-la em “emergência”, com direito a inscrição na Constituição, para ter armas desiguais na disputa eleitoral.

Nunca antes um governante lançou mão de tanta vantagem econômica e política ilegal na expectativa de se reeleger, enquanto no submundo planta teses conspiratórias para justificar uma reação caso nem assim vença — como as pesquisas indicam até aqui. Eis um plano bem engendrado.