Valor Econômico, v. 20, n. 4968, 26/03/2020. Brasil, p. A10

Flexibilização é ameaça ao sistema, dizem especialistas

Hugo Passarelli
Leila Souza Lima 


A flexibilização das medidas de isolamento já adotadas no país para conter o avanço do novo coronavírus é vista como prematura e pode levar o sistema de saúde ao colapso, opinam especialistas.

Ao contrário, muitos defendem a necessidade de ampliar as restrições, e um recuo só deveria ocorrer quando houver evidências seguras de que o ritmo de transmissão diminuiu, o que depende de uma ampla testagem da população com suspeita de ter contraído a doença.

Professor da FGV e pesquisador do departamento de saúde global da Harvard, Adriano Massuda disse que uma quarentena mais radical no Brasil é uma medida “para já”, principalmente nas regiões mais populosas e naquelas com maior vulnerabilidade social, em que a oferta de leitos e unidades de terapia intensiva é escassa.

“O adiantamento dessa decisão pode precipitar o colapso do sistema de saúde num futuro não muito distante. Todas as lideranças mundiais que usam a ciência para orientar o enfrentamento à pandemia do coronavírus e suas políticas estão agindo dessa forma.”

Segundo os especialistas, a decisão está atrelada a informações precisas sobre os grupos ou localidades com maior crescimento de casos. “É preciso mapear em larga escala a população contaminada ou com suspeita de contaminação. Se conseguirmos fazer um ‘roteiro dos casos’, será mais fácil adotar estratégias pontuais para não desacelerar a atividade de outras pessoas não envolvidas nesse processo”, disse André Medici, economista sênior do Banco Mundial e especializado em saúde pública, em seminário on-line do Instituto Fernando Henrique Cardoso.

Apesar de elogiar medidas preventivas adotadas por União, Estados e municípios, o economista lembra que o alcance das políticas públicas brasileiras tem limites. “O problema por aqui é a implementação, que é difícil porque não temos uma máquina totalmente azeitada para fazer isso num país extremamente desigual”, afirma.

O Brasil ainda tem um nível baixo de testagem para o coronavírus em proporção à sua população, mesmo com as iniciativas recentes do governo federal para aumentar o número de exames disponíveis. Uma comparação internacional, organizada pela plataforma Our World Data, aponta que, no dia 13 de março, o país não havia feito exames nem em 3 mil pacientes. A Coreia do Sul, um dos casos mais eficientes na contenção do vírus, já realizou 316,6 mil testes para doença - neste caso, os dados são mais recentes, até 20 de março.

“Se a capacidade de teste for limitada, um distanciamento social mais agressivo poderá ser adotado mais cedo. Da mesma forma, mais capacidade de teste ajudaria a informar quando terminar as restrições”, disse, por e-mail, Josh Petrie, professor-assistente de pesquisa da Escola de Saúde Pública da Universidade de Michigan.

Segundo Massuda, a radicalização da quarentena, que é uma ação preventiva, deve durar o “tempo adequado” - ou seja, até o momento em que a vigilância epidemiológica, a partir do monitoramento, constatar redução de transmissão do agente infeccioso. A estimativa de um prazo exato, explica, dependeria de uma análise muito sofisticada de modelagem epidemiológica.

“É preciso agir agora para coordenar adequadamente essa resposta e garantir o menor número de pessoas infectadas e com necessidades de internação. Caso contrário, teremos o pior dos dois cenários, um país com um sistema de saúde colapsado e em dificuldades econômicas”.

Mesmo que o diagnóstico avance rapidamente, o Brasil pode observar aumento desenfreado da doença e pode chegar um momento em que não importará mais testar e quantificar os infectados e, sim, atender os que precisarem de cuidados intensivos, opina o consultor técnico da Sociedade Brasileira de Infectologia Hélio Bacha.

“É claro que o Brasil tem diferenças regionais, e ainda podemos fazer um desenho melhor da pandemia”, disse Bacha. “Mas haverá certamente um grande número de casos não registrados com a invasão do agente infeccioso pelo país, sobretudo em áreas pobres.”

Medici, do Banco Mundial, esclarece que os níveis de letalidade da doença aumentam conforme o sistema de saúde de país se aproxime do esgotamento. “Existe um determinado limite dos sistemas de saúde [de todo o mundo] para atender as internações, por isso tem de achatar a curva de infecção”, afirma. Isso explica porque na Itália a proporção de mortos com mais de 80 anos é bastante superior à da Coreia do Sul: 20,2% contra 9,3%.

Defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, a retomada da livre circulação da população é um tema ainda preliminar mesmo nos EUA, fonte de inspiração para o posicionamento político do líder brasileiro. “O debate sobre a possibilidade de relaxar as regras de bloqueio está crescendo apenas em certos círculos americanos, principalmente conservadores, muito para tentar racionalizar os comentários aparentemente erráticos do presidente Donald Trump sobre o assunto”, afirmou Paolo Pasquariello, professor da Escola de Negócios Ross, da Universidade de Michigan.

Não há precedentes em outros países de encurtamento da quarentena, aponta Pasquariello. “A única exceção é Hong Kong, onde o sucesso precoce na luta contra o vírus levou as autoridades a relaxar algumas restrições. Infelizmente, pouco depois, a taxa de contágio começou a aumentar.”

Origem da doença, a China começou a permitir algum movimento na região de Hubei, onde Wuhan está localizada, mas ainda não está relaxando seu controle geral da população local. “A China, no entanto, não é um bom exemplo, pois sua vasta economia pode permitir um bloqueio regional total, mantendo grande parte do sistema industrial funcionando”, afirma Pasquariello.