O Globo, n. 32539, 08/09/2022. Política, p. 10

“Bolsonaro não será Orban, e Lula não será Maduro. Isso, no Brasil e impossível''

Entrevista: Jorge Quiroga


Como presidente da Bolívia (2001-2002), Jorge “Tuto” Quiroga, que assumiu o poder após licença por motivos de saúde do ex-ditador Hugo Bánzer, conviveu de perto com o venezuelano Hugo Chávez. Desde o primeiro dia, foram inimigos. Nos últimos 20 anos, Quiroga disputou duas vezes a Presidência, tornou-se acérrimo crítico do Movimento ao Socialismo, do ex-presidente Evo Morales, e enfrentou governos autoritários.

Sobre o pleito no Brasil, Quiroga disse não acreditar que Bolsonaro, apesar do “estilo histriônico”, será como Viktor Orbán, líder ultradireitista da Hungria, e que Lula, “que em tempos de bonança não fez as barbaridades que Chávez fazia”, não será como Maduro. “Não acho que o Brasil corra o risco, sem importar quem ganhe, de virar um regime autoritário”, afirma o boliviano.
 

Nas últimas eleições na América Latina, candidatos de esquerda venceram, e na campanha brasileira, o ex-presidente Lula é favorito. Como analisa este cenário?

O Brasil sempre é fundamental pelo tamanho, dimensões e pelo que significa para a América Latina. Mas analiso este ciclo de eleições de uma maneira diferente. As pessoas confundem o que estamos vendo com o que vivemos e sofremos com a onda chavista. Hugo Chávez (ex-presidente da Venezuela, morto em 2013) era um homem talentoso, mas louco, com um talão de cheques sem limites e uma ambição de expansão que não tinha fronteiras.

Quando o petróleo começou a subir, no começo dos anos 2000, o projeto cresce e vira o Socialismo do Século XXI. Ele precisava de um novo marketing, porque (Simón) Bolívar (herói da independência da Venezuela), por maior que fosse, não significava nada no Paraguai, na Argentina, em Honduras, em El Salvador. Chávez financiou campanhas eleitorais na Ucrânia e na Bielorrússia. O contrapeso democrático a essa onda chavista era Lula, que respeitava as instituições, os meios de comunicação livres e independentes, não cometia os excessos de Chávez. Eu o vivi de forma direta e vi candidatos financiados por Chávez, como o bispo (Fernando) Lugo no Paraguai, (Rafael) Correa no Equador, (Manuel) Zelaya em Honduras.

E depois da morte de Chávez?

Naquele momento, quando esses candidatos eram acusados de ser como Chávez, a saída sempre era usar Lula como fachada, porque ele estava mais prestigiado, conseguia Olimpíadas, Copa. Lula era a centro-esquerda democrática e institucional. Com o tempo, Chávez morreu, o preço do petróleo caiu, chegou Maduro, e o projeto chavista sobreviveu, mas perdeu espaço. Ficou mais autoritário e permanece na Venezuela, em Cuba, na Nicarágua e um pouco na Bolívia. Esta nova onda não tem a ver com o dinheiro chavista, e sim com o descontentamento social por economias colapsadas, desvalorizações… Isso levou os países a buscarem alternativas. Não diria que esses países correm o risco de ser parte de um projeto continental autoritário. Não existe o dinheiro que existia antes.

Se Lula vencer, será pela insatisfação de muitos brasileiros com Bolsonaro?

Sim, e pela lembrança de que ele governou democraticamente nos anos de bonança. A década de ouro foi de 2004 a 2014, ele pegou a melhor época. Perceba que Álvaro Uribe era muito popular na Colômbia, porque as commodities estavam nas nuvens. Chávez na Venezuela e Lula no Brasil. Tudo subia, energia, alimentos e minérios. Isso trouxe muito dinheiro aos países latino-americanos, também muito desperdício, Lava-Jato, muita corrupção. Esses tempos não voltarão.

E Bolsonaro?

Bom, ele tem esse discurso… Eu evito falar sobre candidatos de outros países e fiquei muito incomodado quando Lula veio à Bolívia escolher candidatos. Em 2005, Lula veio e começou a convidar os candidatos para conversar. Respondi que não iria por dignidade, porque não me parece correto que os candidatos da Bolívia tenham que desfilar na frente do presidente do Brasil, por mais popular que seja. Que governo faria o Lula de hoje? Será um perigo como é (Nicolás) Maduro na Venezuela, ou (Daniel) Ortega na Nicarágua? Não, francamente acho que não. Lula é uma figura conhecida, e sabemos que em tempos de bonança não fez as barbaridades que Chávez fazia.

Aqui não se trata de esquerda ou direita, trata-se de autoritarismo e democracia. O problema que a região enfrenta são governos autoritários. Entendo que o estilo histriônico de Bolsonaro causa reações. O histórico de corrupção de Lula também causa reações. Mas não acho que o Brasil esteja em risco, sem importar quem ganhe, de virar um regime autoritário. Aconteça o que acontecer, Bolsonaro não será (Viktor) Orbán (líder ultradireitista da Hungria), e Lula não será Maduro. Isso no Brasil é impossível.

Como o senhor avalia o governo de Bolsonaro, com presença expressiva de militares, discursos de ataque ao STF, questionamentos ao sistema de voto eletrônico…

Para mim, em qualquer país, devem ser cumpridas cinco condições de um regime democrático: eleições livres, justas e transparentes; respeito às instituições independentes; respeito à liberdade de expressão e aos jornalistas; não criminalizar a oposição; e respeitar religiosamente os limites de mandato. Antes, na região, Chávez definia quem era de esquerda e quem era de direita, mas isso não funciona mais. Até porque Chávez não era de esquerda. Como dizia o escritor mexicano Carlos Fuentes, ele era um Mussolini tropical caribenho. Se Chávez era de esquerda, então os que não estamos com Chávez, porque somos democratas, somos de direita. Não, eu sou a favor do Estado de Direito.

Se a divisão é entre democratas e autoritários, de que lado considera que está Bolsonaro?

Por enquanto, porque julgo as pessoas por suas ações e não por seus discursos, ninguém pode dizer que o Brasil não é uma democracia. Vi recentemente Bolsonaro no STF, com Lula na mesma cerimônia. Leio tudo, se Bolsonaro vai reconhecer (o resultado da eleição) ou não. Existe muita influência da imprensa americana, obcecada com Donald Trump. Querem permanentemente ver quem é o Trump no Brasil, Colômbia, Chile...

Bolsonaro é admirador e diz ser amigo de Trump.

Claro, sei de tudo. Bolsonaro fez de tudo para ser identificado com esse lado (da política). Isso leva a uma análise que não reflete o fato de que, independentemente do que for dito, o Brasil tem um Congresso que funciona, uma Justiça que é respeitada. A imprensa continua funcionando. Podemos objetivamente dizer que no Brasil existem os cinco elementos que mencionei. Espero que, ganhe quem ganhar, sejam respeitados esses princípios. E se ganhar Lula, que nunca mais exporte a corrupção, porque isso causou um dano enorme à América Latina.

Se Bolsonaro for o vencedor, espero que respeite as instituições, a imprensa livre e que a democracia brasileira esteja forte. O Brasil deve ser uma referência democrática na região. Lula, assim como (Álvaro) Uribe na Colômbia, tinha popularidade e poder para buscar um terceiro mandato, e nenhum dos dois o fez. Já na Bolívia, foi o que fez Evo Morales.

O senhor falou em premissas democráticas e, entre elas, a não criminalização de opositores. Mas na Bolívia, no governo da presidente interina, agora presa, Jeanine Áñez, opositores eram perseguidos…

Fui um dos mais críticos da gestão de Áñez, justamente pelo que você diz. Eu disse que quem faz a mesma coisa que o Movimento ao Socialismo (MAS) de Evo Morales, é mais do mesmo. E a corrupção, nem te conto. Não foi da mesma escala, mas nada disso é aceitável num governo de transição democrática. Também questionei a candidatura de Áñez. Faço as mesmas demandas a todos.

O senhor é otimista ou pessimista sobre a democracia na América Latina?

A preocupação é grande. Os governos de Venezuela e Nicarágua são abertamente ditatoriais, em Cuba continua a repressão. Não temo que Chile, Peru, Colômbia sigam o mesmo caminho. Preocupa-me que Brasil, México, Argentina não tenham posições firmes sobre as ditaduras e isso lhes dá oxigênio. Se você não extirpar esse câncer para a democracia, pode voltar a fazer metástase. A OEA está questionada e paralisada, assim como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas isso não é respeitado. Os EUA distraídos com seus problemas e temos México, Brasil e Argentina que não dizem muito. O que fazemos, então, os pequenos países como a Bolívia? O que fazem os perseguidos por essas ditaduras?