O Globo, n. 32541, 10/09/2022. Mundo, p. 20

O discurso do Rei

Ana Rosa Alves


Em seu primeiro discurso como rei dos britânicos, Charles III prometeu ontem se inspirar em sua “querida mãe”, Elizabeth II, transferiu ao filho mais velho e agora primeiro na linha de sucessão, William, os títulos de príncipe de Gales e duque da Cornualha, e declarou seu amor pelo filho rebelde, o príncipe Harry, que em 2020 se afastou de títulos e deveres da realeza e se mudou para os Estados Unidos com a mulher, Meghan.

Foram os primeiros passos naquele que deve ser o maior desafio do novo rei: superar sua impopularidade para liderar a monarquia britânica, cuja imagem e percepção de si própria foram por sete décadas indissociáveis da monarca que morreu na quinta feira, aos 96 anos.

Menção a Harry e Meghan

Em uma fala pré-gravada, Charles tentou passar uma mensagem de continuidade e conciliação. Disse que a rainha, que fez “sacrifícios pelo dever”, foi uma “inspiração e exemplo” para ele e seus parentes, que têm com ela “a dívida mais profunda que uma família pode ter com sua matriarca”. Afirmou também se inspirar nela para “renovar” sua promessa de serviço ao povo britânico:

— Sua dedicação e devoção como soberana nunca cedeu, fossem tempos de mudança e progresso, tempos de alegria e celebração, e tempos de tristeza e perda — disse ele.

— Para minha querida mamãe, enquanto você começa sua última grande jornada para se juntar ao meu querido papai, quero simplesmente dizer isso: obrigado. Obrigado pelo seu amor e devoção à nossa família e à família de nações a qual você serviu tão diligentemente todos estes anos.

Charles, que aos 73 ano sé o mais velho monarca britânico a subir ao trono, prometeu “solenemente, durante o tempo restante que Deus me der, respeitar os princípios constitucionais que estão no cerne” do Reino Unido:

— Nos últimos 70 anos, vimos nossa sociedade se transformar em uma de muitas culturas e fés. As instituições de Estado mudaram. Mas, frente a todas as mudanças e desafios, nossa nação (...) prosperou e floresceu. Nossos valores permaneceram e devem permanecer constantes — disse o novo rei.

— Eu me empenharei para servir com lealdade, respeito e amor, como tenho feito por toda a minha vida.

No discurso, Charles III mencionou, além dos filhos, sua mulher, Camilla Parker Bowles, que passou a sera rainha consorte, em “reconhecimento ao seu próprios erviço público leal” desde o casamento dos dois, há 17 anos.

— Com Catherine ao seu lado, nossos novos príncipe e princesa de Gales continuarão a inspirar e liderar nossas conversas nacionais, ajudando a trazer os marginais para o centro, onde uma ajuda vital pode ser oferecida — disse, referindo-se a William e à nora, Kate Middleton.

— Também quero expressar meu amor por Harry e Meghan enquanto eles continuam construindo suas vidas no exterior.

Antes do discurso, Charles, vindo de Balmoral, na Escócia, onde a mãe morreu, passou 12 minutos cumprimentando súditos que o aguardavam no Palácio de Buckingham, em sua primeira interação com a população após se tornar chefe de Estado.

Popularidade baixa

Em uma quebra de protocolo, uma mulher não identificada deu um beijo em seu rosto. Ela pareceu ter perguntado antes, e o rei pareceu ter aceitado, já que inclinou a cabeça. Junto com Camilla, o monarca também observou buquês deixados pela população no palácio.

Charles III terá que forjar uma marca própria para seu reinado em um momento de pessimismo para os britânicos, que enfrentam a maior inflação anual em 40 anos e uma recessão no horizonte. Antes da morte de Elizabeth II, cuja aprovação era de 75%, apenas 42% dos britânicos tinham uma imagem positiva do herdeiro do trono, segundo pesquisa do YouGov. William, por sua vez, é aprovado por 66%.

Há anos especula-se sem muito fundamento que abrir mão do trono em benefício de William. Com 40 anos recém-completados, três filhos pequenos e um casamento aparentemente estável, o príncipe é visto como o símbolo de uma realeza jovem e menos sisuda.

Já a relação de Harry com seu pai é frágil desde que ele e Meghan anunciaram que abandonariam suas funções reais. Os atritos pioraram após uma explosiva entrevista do casal, no ano passado, à apresentadora Oprah Winfrey, acusando integrantes da família real de racismo. Harry disse abertamente que sua relação com o pai e o irmão desandou desde então, e Meghan sequer viajou a Balmoral junto com o marido para se despedir de Elizabeth II.

A imagem pública ruim do novo rei não se deve apenas aos outros. Sua reputação nunca se recuperou por completo de seu conturbado casamento com Diana Spencer e do affair que teve enquanto casado com Camilla Parker Bowles. Em 1992 veio a separação, e quatro anos depois, o divórcio. Em 1997, o acidente de carro que matou Diana em um túnel parisiense inviabilizou a reconstrução da imagem de Charles. Apenas quatro em cada dez britânicos veem a nova rainha consorte com bons olhos.

— Eu conto coma ajuda amorosa de minha querida mulher, Camilla — disse Charles ontem.

Encontro com a premier

Antes da ascensão, houve quem especulasse que a tarefa principal de Charles seria manter o trono aquecido para William, mas mesmo para isso os desafios que o aguardam não são pequenos. Elizabeth II chegou ao trono dois anos após o fim da Segunda Guerra e dizia publicamente que suas audiências semanais com o premier Winston Churchill a ajudaram a entender o funcionamento das engrenagens.

O novo reinado começa com uma crise econômica indissociável da invasão russa na Ucrânia, os impactos dramáticos do Brexit e em um mundo onde monarquias são cada vez mais anacrônicas. Na sede do governo em Downing Street, não está um estadista consolidado, mas uma premier, Liz Truss, que chegou ao poder só dois dias antes do novo rei.

Ontem, Charles III a recebeu para uma audiência no palácio, a primeira reunião formal entre os dois, por cerca de meia-hora.

Mais cedo, o Parlamento realizou uma sessão extraordinária em homenagem a Elizabeth II. Segundo Truss, a monarca foi  “uma das maiores líderes que o mundo já conheceu”, tom similar ao do seu antecessor, Boris Johnson, que se referiu à chefe de Estado como “Elizabeth, a Grande”.

— Ela reinventou a monarquia na era moderna — disse Truss.