O Globo, n. 32541, 10/09/2022. Política, p. 10

Novos crimes e a mudança de rotina

Rafael Soares


Ainda que os homicídios estejam em queda no país, a sensação de insegurança segue presente de forma expressiva na rotina dos brasileiros e provoca mudanças de hábitos, revelam duas pesquisas feitas pelo Ipec, a pedido do GLOBO. Em torno da metade da população relata ter parado de sair à noite e de carregar dinheiro, enquanto um a cada quatro afirma não usar roupas caras. Em paralelo, o resultado dos levantamentos expõe que a dinâmica do crime se adaptou ao mundo digital : 29% dizem que foram vítimas ou moram com alguém que caiu em golpes por telefone, WhatsApp ou SMS em que houve pedido de pagamentos — o índice é o mesmo quando se trata de clonagem de cartões.

O questionário apresentado listava onze atividades para que os entrevistados apontassem aquelas que desistiram de fazer em função do medo da violência. Sete em cada dez indicaram ao menos uma: andar a pé durante à noite foi a mais citada (55%), seguida por levar dinheiro (50%), sair à noite (44%)  e usar roupas ou acessórios caros (26%).

Mulheres veem mais risco

Entre as mulheres, o medo de caminhar à noite é maior (60%), enquanto os mais pobres (49%) evitam mais sair de casa após escurecer do que os mais ricos (41%). Os números mostram também a presença cotidiana de golpes digitais, citados com mais frequência do que assaltos. — Há uma mudança em curso na dinâmica da violência urbana, sobretudo nos crimes contra o patrimônio. Roubos de celular estão sendo associados a golpes, quando o criminoso usa o aparelho para fazer transferências — afirma o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Renato Sérgio de Lima. Como se trata de uma prática relativamente nova, nem todas as secretarias de segurança contam os casos de estelionato digital. No ano passado, com base em dados enviados por 18 estados, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública contabilizou 60.590. No entanto, para autoridades, o número real de vítimas deve ser bem maior, já que os registros do crime de estelionato, sem especificação, explodiram no país: passaram de 426.799 em 2018 para 1.265.073 em 2021.

A reportagem de hoje encerra a série Tem Solução, em que o GLOBO apresentou os temas que a população enxerga como os maiores problemas do país, além de medidas que devem ser adotadas pelas instâncias de governo para que os obstáculos sejam superados. Segurança pública e violência foram apontadas por 17% dos brasileiros, empatadas com pobreza, fome e miséria e atrás de desemprego, corrupção, saúde, educação e inflação. Em 2018, o índice era de 38%. No ano passado, o número de mortes violentas intencionais (homicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes após intervenção policial) foi de 47.503, queda de 6% com relação a 2020 e patamar mais baixo desde 2011. O movimento ajuda a explicar o recuo na percepção geral.

— Em 2017, tivemos o ápice da guerra entre as duas maiores facções do tráfico do país, com consequências mais graves no Norte e no Nordeste do país. De lá para cá, os conflitos se acomodaram — diz Lima. A estabilização do conflito ao longo dos últimos quatro anos e o posterior predomínio de uma nova lógica interna dos grupos criminosos, mais voltada para um modelo empresarial de venda de drogas, levou a mudanças no perfil da violência . As periferias passaram a registrar menos homicídios, e o controle dos territórios não tem mais a mesma ostensividade armada. A pesquisa também revelou que, nos últimos quatro anos, 14% dos brasileiros foram vítimas de assaltos com armas de fogo. Quando os entrevistados são moradores de capitais, o índice chega a 21%. A proporção aumenta entre os moradores do Nordeste (18%) e também entre os dois extremos da pirâmide de renda: 17% dos que ganham até um salário mínimo afirmaram terem sido vítimas do crime, assim como 18% daqueles com rendimento superior a cinco salários mínimos.

Num país de dimensões continentais, faz sentido que cada região tenha uma realidade distinta. O Nordeste, que tem a maior taxa de assassinatos entre todas as regiões do país (35,5 por 100 mil habitantes em 2021, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública), foi onde mais gente apontou a segurança pública como problema: 22%. No Sudeste, onde a taxa de assassinatos foi de 13,4 por 100 mil habitantes em 2021, o índice foi de 13%.

Resposta integrada

A pedido do GLOBO, o FBSP, o Instituto Sou da Paz, o Instituto Igarapé e o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/ USP) organizaram uma série de prioridades para o próximo presidente. É crucial a coordenação de instituições federais e estaduais no combate ao crime organizado. Nos crimes on-line, as polícias precisam manter parcerias com as instituições financeiras. Ações específicas direcionadas para a Amazônia também são consideradas essenciais. Enquanto a violência letal caiu 6% no Brasil entre 2020 e 2021, a região Norte foi na contramão, com alta de 7,9%.

A área com conflitos de terra e crimes ambientais alimentados pelo crime organizado, o que inclui traficantes de drogas. Reverter a flexibilização do acesso a armas de foto, levada adiante pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, é outra medida. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), deu uma liminar na segunda-feira barrando determinadas normas, mas especialistas veem como fundamental que o governo federal reoriente a política para o setor, reforçando os mecanismos de controle, a exemplo do que está disposto no Estatuto do Desarmamento.