O Globo, n. 32542, 11/09/2022. Saúde, p. 27

Vigilância em saúde

Giulia Vidale


Recentemente, autoridades de saúde da cidade de Nova York informaram ter encontrado amostras do poliovírus, causador da poliomielite, na rede de esgoto do município. Alerta semelhante também ocorreu em Londres e em Jerusalém. A constatação imediatamente motivou ações de saúde pública, em especial a intensificação da vacinação da população desses locais. A princípio, o fato de o vírus ter sido detectado pelo monitoramento desse sistema pode parecer estranho, mas não é. Essa é uma importante estratégia de vigilância epidemiológica para diversas doenças.

— O monitoramento de esgotos é uma ação importante em saúde pública porque permite detectar a doença antes que as pessoas comecem a adoecer. Isso fortalece a política de saneamento — explica o pesquisador José Paulo Gagliardi Leite, do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). A última vez que o poliovírus selvagem foi detectado no Brasil foi em 2014, no aeroporto de Viracopos, fruto de um trabalho de vigilância da Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), que monitora de forma sistemática o poliovírus e a cólera no esgoto de portos, aeroportos e rodoviárias da região metropolitana de São Paulo. Embora essas doenças estejam eliminadas do Brasil, há lugares em que elas ainda existem. Isso significa que elas podem ser trazidas por turistas. A vigilância desses locais permite controlar essa entrada.

— Esse monitoramento é importante para conhecer a circulação silenciosa desses vírus. Conseguimos detectá-los antes de aparecerem casos sintomáticos das doenças e, assim, iniciar medidas de prevenção — avalia o virologista Edson Elias, chefe do Laboratório de Enterovírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).

Esse acompanhamento é particularmente importante neste momento, devido à baixa taxa de vacinação. O percentual de imunização contra a pólio não atinge os 95% desejados pelo Ministério da Saúde desde 2015. No ano passado, alcançou apenas 70% das crianças.

— O Brasil está com baixa cobertura vacinal, então estamos com um risco bastante elevado de reintrodução da pólio. Um único caso já representa um alerta muito grande — explica a bióloga Mikaela Renata Funada Barbosa, gerente da Divisão de Microbiologia e Parasitologia da Cetesb.

O monitoramento também é realizado por meio de coleta de amostras em estações de tratamento de esgoto (ETEs). De acordo com Barbosa, haverá a ampliação dos pontos de vigilância da doença para alguns bairros da cidade de São Paulo e ainda municípios do interior.

Na pandemia

Desde o início da pandemia de Covid-19, a estratégia também passou a ser utilizada por diversas cidades, incluindo São Paulo, Niterói (RJ) e Belo Horizonte (MG), para detectar a presença do Sars-CoV-2 no esgoto das cidades.

— A gente consegue não apenas detectar, mas também quantificar a presença do vírus nas cidades e nos bairros. Esses dados ajudam a identificar tendências e nortear políticas públicas, independente de dados clínicos — afirma Cesar Mota, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador da Rede Monitoramento Covid Esgotos, projeto piloto criado para detecção e quantificação do novo coronavírus em amostras de redes nas cidades de Belo Horizonte e Contagem. O monitoramento do Aeroporto Internacional de Confins, em Belo Horizonte, por exemplo, pode nortear decisões sobre uso de máscara e higienização. Já o acompanhamento de um asilo de idosos da Santa Casa de Belo Horizonte pode indicar a necessidade de ações de testagem em massa. Além disso, o aumento da quantidade de vírus no esgoto antecede em alguns dias a alta de pessoas com sintomas e em algumas semanas o crescimento das hospitalizações, o que pode servir de alerta para o sistema de saúde dos municípios.

Hoje, a rede já se expandiu para outras cinco capitais — Fortaleza (CE), Recife (PE), Brasília (DF), Rio de Janeiro (RJ) e Curitiba (PR) —e deu tão certo que o próximo passo é criar um programa nacional de vigilância epidemiológica com base no esgoto. Segundo Mota, esse planejamento já está acontecendo junto ao Ministério da Saúde e ai deiaé que ele possa ir além da Covid-19 e inclua outras doenças infecciosas, como viroses, arboviroses e germes com resistência a antibióticos.

— Qualquer doença em que o agente causador é excretado em fezes ou urina é passível de ser monitorado via esgoto. A quantidade de informação epidemiológica presente nesse ambiente é impressionante e isso tem um potencial muito grande, em especial para um país como o Brasil, que tem deficiência em testagem de clínicas — diz Mota.

Como funciona

A forma ideal de fazer a detecção de agentes infecciosos é por meio da análise do material que chega às estações de tratamento de esgoto (ETEs). Isso porque, se algo for encontrado, é possível saber quais são os bairros em que o vírus está circulando e iniciar ações direcionadas. — Para qualquer estudo com esgoto, é preciso que a rede contemple pelo menos 90% da população. Uma cidade com redes de esgoto bem dimensionadas por bairros, que vão para uma estação de tratamento específica, permite mapear a disseminação dos patógenos e iniciar ações preventivas de saúde pública. Sem isso, não é possível monitorar — pontua Leite. No entanto, isso impossibilitaria esse tipo de vigilância na maioria das cidades brasileiras. Dados da 14ª edição do Ranking do Saneamento mostram que somente 50% do volume de esgoto do país recebe tratamento. Por isso, os pesquisadores encontraram outros caminhos.

Além das estações de tratamento, a Cetesb monitora água de rios que recebem grandes quantidade de esgoto não tratado. A Rede Monitoramento Covid Esgotos também inclui coletas em canais de água pluvial, que recebem despejo bruto da população. Mota explica que sabendo a topografia do local, é possível inferir qual é a população que está contribuindo com o material que vai para esses canais.

— A gente tem feito esse acompanhamento e tem dado certo em situações de maior precariedade de cobertura de rede — afirma Mota.

A periodicidade da coleta do material varia de acordo com cada projeto, podendo ser semanal ou quinzenal. Um profissional do laboratório ou da empresa de saneamento básico coleta a amostra, que varia entre um a dois litros de esgoto, em cada ponto. Esse material é refrigerado e levado para o laboratório onde a amostra é concentrada e submetida a análises específicas para cada patógeno investigado.