Valor Econômico, v. 20, n. 4968, 26/03/2020. Finanças, p.C1

Mercado leva ao governo propostas para crédito a folha

Talita Moreira
Flávia Furlan 


O Ministério da Economia tem na mesa pelo menos três propostas enviadas pelo setor financeiro sobre a criação de linhas de crédito para financiar a folha de pagamento de pequenas empresas. Nelas, o governo entraria como avalista das operações e amorteceria um pedaço grande da inadimplência, apurou o Valor.

Um grupo defende que o papel de garantidor seja exercido pelo Tesouro e outro, pelo Banco Central (BC). Mas, em qualquer cenário, a atuação do governo funcionaria de maneira semelhante à de uma cota subordinada de fundos de investimentos, que é a primeira a arcar com as perdas quando elas ocorrem. Dessa forma, os bancos - privados ou públicos - teriam mais incentivo para conceder crédito no ambiente de risco ainda incalculável provocado pela crise do coronavírus.

Há quem proponha ainda que o crédito para folha seja bancado integralmente pelo Tesouro Nacional, sem participação dos bancos no risco. Qualquer alocação de risco ao setor privado, neste momento, encareceria muito o crédito, diz uma fonte.

Essa vertente é defendida abertamente pela Stone, credenciadora voltada a pequenas e médias empresas. O presidente da companhia, Augusto Lins, afirma que o Tesouro deveria entrar com capital a fundo perdido para o pagamento de folha, com a contrapartida de que o empresário não faça demissões. “É um pagamento de ‘bolsa-salário’ para que a empresa fique de pé num período de constrição de vendas, que seria concedida por número de funcionários”, afirma o executivo, que concedeu entrevista ao Valor.

Nos Estados Unidos e na Europa, o governo é quem está pagando a conta de manter vivos os pequenos negócios, lembra outro interlocutor sob a condição de não ser identificado na reportagem.

Apesar das medidas adotadas pelo Banco Central (BC) para injetar liquidez no sistema, os bancos estão retraídos na oferta de crédito porque ninguém tem dados para dimensionar a profundidade e a duração da crise. Porém, o entendimento das instituições financeiras é o de que financiar pequenas e médias empresas será crucial para conter os estragos provocados pela pandemia do coronavírus na atividade econômica, que vêm sendo comparados com os de uma guerra. O assunto está na pauta do setor há alguns dias, conforme noticiou nesta semana o Valor.

Um dos grupos sugere que os recursos do financiamento de salários não sejam depositados na conta da empresa tomadora da linha. Uma possibilidade seria oferecer o dinheiro, por exemplo, na forma de um cartão pré-pago.

Financiar a folha de pagamentos é apenas uma das ideias que estão sendo debatidas entre instituições financeiras e governo. Há uma profusão de medidas em discussão. Uma delas prevê a criação de um fundo com participação do Tesouro e do BNDES para comprar recebíveis de pequenas empresas, especialmente duplicatas. De acordo com um executivo de banco, seria uma saída para dar liquidez a essas companhias, que dependem do crédito mercantil.

O Valor apurou que o Ministério tem procurado bancos, credenciadoras e outras empresas ligadas ao setor financeiro para discutir ideias e pedir sugestões. As conversas começaram há alguns dias, mas foram intensificadas de segunda-feira para cá. “Acho que se surpreenderam com o tamanho do impacto na economia”, afirma uma fonte próxima a instituições financeiras. “Agora, precisam correr para recuperar o tempo perdido e as coisas não são fáceis em Brasília no lado político.”

Até a noite de ontem, a proposta de isolamento vertical dos grupos de risco feita pelo presidente Jair Bolsonaro dividia opiniões no setor financeiro, já que é amplamente contestada por especialistas em saúde. No entanto, todos os interlocutores ouvidos pela reportagem disseram ser fundamental que o governo coloque a mão no bolso com urgência para não deixar a economia parar.

No geral, a sensação entre executivos do setor é a de que as medidas anunciadas pelo BC são insuficientes e que a demora do governo em apresentar um plano mais amplo e estruturado está fazendo com que o cenário se deteriore rapidamente. “Tem muita conversa, muita gente ouvindo e pensando. Só isso por enquanto, e uma demanda brutal de crédito por parte das empresas”, afirma fonte graduada de uma grande instituição financeira.

Embora as discussões tenham se intensificado nesta semana, fontes do setor ainda veem muita “bateção de cabeça” entre as diversas equipes do ministério e tempo gasto com propostas consideradas demoradas ou de difícil execução. É o caso de uma sugestão feita por técnicos da pasta segundo a qual a Caixa concederia uma carta de crédito para que os microempresários, então, batessem na porta das instituições privadas para tomar empréstimo. Além de considerada difícil de operacionalizar, a ideia enfrenta resistência no banco público.

Para alguns interlocutores ouvidos pelo Valor, existe boa vontade, mas falta um comando centralizado que organize as conversas, defina prioridades e estabeleça um plano de ação. “Essa equipe sabe trabalhar no sucesso, não na crise”, afirma uma fonte que tem participado das discussões.

Os bancos vêm defendendo uma ação mais contundente do governo sobretudo para pequenas e médias empresas. O segmento é o que mais tende a sofrer na crise, o que mais emprega no país e, há dois anos, tem sido alvo de grande interesse das instituições financeiras para a oferta de crédito.

As conversas, entretanto, não giram em torno apenas desse tema nem só de crédito. Também vêm sendo buscadas soluções para melhorar o funcionamento do mercado secundário local e externo e equacionar o funding de instituições financeiras.

Outra questão em debate é quem tem de assumir a frente numa eventual injeção de recursos estatais no mercado: o Tesouro ou o Banco Central.

Na visão de um advogado especialista em bancos, as medidas adotadas até aqui pelo BC são corretas, mas é preciso ir além. “O Banco Central tem de funcionar como o banco dos banqueiros. Tem de assumir o papel de prestamista de última instância”, diz.

Diante das características da crise atual, essa fonte defende que o BC seja doador de recursos para o mercado na forma de operações compromissadas, em que há exigência de recompra, e ofereça alívio temporário em exigências de capital. Uma nova redução nos depósitos compulsórios seria pouco eficaz, apesar de ser defendida pelas instituições financeiras. “Os bancos choram demais, mas é preciso dar liquidez. Falta de liquidez vira insolvência em poucos dias.”

Nos bancos, as medidas que já foram adotadas pelo Banco Central são consideradas corretas, mas insuficientes porque têm pouco efeito sobre a questão central da crise: a disparada do risco. O regulador anunciou nas últimas medidas que, segundo ele próprio, terão impacto de R$ 1,2 trilhão. Elas vão de liberação de compulsório a redução de algumas exigências de capital. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, disse que novas ações virão, inclusive para aliviar a situação de pequenas companhias.