Valor Econômico, v. 20, n. 4968, 26/03/2020.Legislação & Tributos, p.E1

Justiça autoriza penhora de ativos financeiros nos Estados Unidos

Adriana Aguiar 


A busca por valores devidos começa a romper fronteiras entre países. Uma decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) determinou a penhora de ativos financeiros localizados nos Estados Unidos até o limite da dívida executada, valendo-se dos mecanismos da cooperação jurídica internacional.

No processo, o Banco Sistema tenta recuperar uma dívida em torno de R$ 100 milhões, em valores atualizados. A cobrança teve origem em um empréstimo, efetuado em 1996, pela instituição financeira à Angélica Brasil Incorporações e Empreendimentos, pertencente ao empresário Julio Bogoricin, referência no mercado imobiliário do Rio de Janeiro, que morreu no dia 21 em Nova York, e sua esposa, também morta, Rita Torá Bogoricin.

A determinação de penhora de bens no exterior ainda é pouco comum no Brasil. Não existe um acordo internacional específico sobre essa possibilidade e a medida ainda tem que ser analisada posteriormente pela Justiça local, o que pode demorar mais alguns anos. No caso dos Estados Unidos, de um a dois anos. Em geral, esses acordos de cooperação são mais utilizados na área penal ou de família, para tratar de pensão e guarda de filhos.

O banco tenta localizar, desde 2002, bens para o pagamento da dívida, contraída em 1996. Na época, era de R$ 8 milhões. O imóvel, dado em garantia da dívida, chegou a ser vendido por R$ 1,4 milhão pelos devedores. No processo, a instituição financeira alega que os valores já ultrapassam os R$ 100 milhões e os sócios seguem protegendo seu patrimônio, apesar de ostentar riqueza com viagens ao exterior, luxuosos jantares em Nova York e patrocínios de eventos na mesma cidade.

Em Manhattan (distrito de Nova York), o banco localizou quatro imóveis, de propriedade dos sócios, e mais três que teriam sido transferidos para terceiros. Porém, só pediu o bloqueio de ativos financeiros em contas e aplicações no exterior.

Segundo o relator, desembargador Shiroshi Yendo, da 15ª Câmara Cível do TJ-PR, existem requisitos para conceder a medida pleiteada: seja ela a probabilidade de provimento do recurso e o perigo de dano grave, de difícil ou impossível reparação. Uma vez que, acrescenta, foram realizadas buscas frustradas no Bacen Jud, em 2012 e 2018, e existem indícios de que os sócios estão se desfazendo de bens no exterior. Foram vendidos alguns imóveis entre 2014 e 2015.

O magistrado ainda destaca na decisão, que concedeu tutela antecipada (espécie de liminar) ao autor, que as buscas ocorrem desde de 2002 e a venda do imóvel dado em garantia da dívida “já demonstra fortes indícios de tentativa de frustrar os efeitos da execução”.

Para o advogado que assessora o Banco Sistema, Rafael Pimenta, sócio do sócio do Galdino & Coelho Advogados, a história do processo é típica do Brasil: a execução começou em 2002, foram quase dez anos para citar todos os réus e, neste meio tempo, todos os bens foram transferidos para terceiros. Então, acrescenta, os sócios do empreendimento foram morar nos Estados Unidos e transferiram todo o patrimônio para o exterior, onde tinham uma vida de luxo. “Lá eles frequentavam a alta sociedade, possuem diversos imóveis, patrocinavam eventos. Mas não se acha um real no Brasil”, diz.

A decisão, segundo o advogado, “traz um paradigma importante para demonstrar que o juiz brasileiro pode determinar a penhora de ativos financeiros em qualquer lugar do mundo, nos casos em que não se localiza bens no Brasil”. Trata-se, segundo ele, de “uma virada de página do Poder Judiciário contra a conduta de devedores no Brasil, que vivem vida de luxo no exterior”.

A liminar do TJ-PR foi dada em agravo de instrumento (nº 0004367-51.2020.8.16.0000) e a análise do mérito está marcada para o dia 1º de abril. Para Pimenta, é difícil que a decisão seja revertida.

O advogado que assessora a Angélica Brasil Incorporações, Carlos Eduardo Quadros Domingos, sócio do Jorge Domingos Advogados, informa, por meio de nota, que somente irá se manifestar nos autos do processo. “Esperamos que a decisão seja modificada quando do julgamento do mérito do recurso de agravo de instrumento”, diz.

Caso a decisão definitiva confirme a penhora no exterior, o processo deve ser tocado em parceria com um escritório americano, que deve auxiliar para dar efetividade à decisão, explica Pimenta. Com a morte dos sócios, a execução prossegue contra o espólio. “A universalidade dos seus bens, que constitui o acervo hereditário, passará a ser representada pelo inventariante. Ou na falta deste, pelo administrador provisório dos bens”, afirma o advogado.

Se houver decisão definitiva, deve ser expedida a chamada carta rogatória, para encaminhar para os Estados Unidos a decisão judicial e todas as documentações traduzidas necessárias para comprovar a medida. “Os Estados Unidos têm muita agilidade, principalmente na área penal. Na área cível, vai depender do caso concreto”, diz a advogada de contencioso cível, Thaís Pessini, sócia do FAS Advogados. “Em geral, os pedidos demoram de um a dois anos para serem analisados.”

Os juízes brasileiros, segundo a advogada, têm o poder de tomar medidas judiciais com efeito fora do Brasil, no caso dos países com tratado de cooperação jurídica internacional, conforme estabelece o inciso VI do artigo 27 do Código de Processo Civil (CPC). O dispositivo diz que “a cooperação jurídica internacional terá por objeto qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.”

Porém, destaca Thaís, decisões como a do TJ-PR ainda são raras, por não haver um acordo específico em tratados internacionais sobre penhora. “Ainda existe uma insegurança de como isso será tratado em outros países.”

A decisão, de acordo com o advogado Luís Cascaldi, do Martinelli Advogados, “é excelente, mas a medida acaba sendo pouco utilizada diante da dificuldade de executá-la”. O credor, acrescenta, deve comprovar que há bens ou dinheiro no exterior. E, posteriormente, após o aval do Judiciário, deve efetivar a penhora. “Buscar bens no exterior, em geral, só se adota como última medida, em casos de dívidas altas que compensem.”