Título: China tem apartheid para camponês
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 28/11/2005, Internacional, p. A8

O país mais populoso do mundo, com 1,3 bilhão de habitantes, vive, ainda hoje, o que é considerado por analistas uma espécie de apartheid contemporâneo. O sistema huku é um forte instrumento de controle da China, que monitora e restringe a migração de trabalhadores rurais para os centros urbanos. Como conseqüência, os 800 milhões de camponeses chineses são privados de benefícios da vida nas cidades. Esse quadro, no entanto, está prestes a mudar. O governo comunista de Hu Jintao anunciou, este mês, a intenção de abolir a separação legal em 11 das 23 províncias.

Há décadas, o sistema huku, instaurado por Mao Tse-Tung - que, curiosamente, chegou ao poder com a ajuda de trabalhadores rurais, em 1953 - regulamenta a estadia de trabalhadores rurais nas cidades. Com a proposta de reforma, o governo pretende estimular o fluxo de serviços sobretudo do Oeste pobre para a costa Leste do país, área de maior desenvolvimento. A medida visa, ainda, controlar os freqüentes protestos contra o abismo social.

Oficialmente, o huku tem como função coletar e administrar informações sobre a população, como registros de parentesco e residência, além de monitorar o movimento do povo.

- Mas, na prática, serviu de base para a alocação de recursos e subsídios para os residentes dos centros urbanos, afetando politicamente o movimento de capital e recursos humanos - afirmou ao JB, Fei-Ling Wang, professor da Escola de Relações Internacionais Sam Nunn, do instituto de TecIologia da Georgia.

Para o chinês, a suspensão do sistema nas províncias pré-estabelecidas contribuirá para a coexistência entre o rápido desenvolvimento econômico do país e a estabilidade do Partido Comunista:

- É uma vitória das forças do mercado. Mas, além disso, há um esforço do governo para maquiar o desequilíbrio entre campo e cidade, visando manter o monopólio político. Apesar das mudanças, os princípios básicos de monitoramento da migração, o estilo chinês de controle político e perseguição vão continuar e, provavelmente, serão fortalecidos - avaliou.

Jiang Wenran, diretor do Instituto China, da Universidade de Alberta, no Canadá, também não acredita numa transformação profunda com a abolição do sistema huku:

- Algumas reformas já foram ensaiadas, mas nunca houve uma mudança efetiva. O huku é um apartheid na História moderna. Enquanto os residentes urbanos gozam de benefícios sociais, econômicos e culturais, os camponeses, maioria da população, são tratados como segunda classe.

São muitos os que tentaram furar a barreira e se arriscaram para chegar às cidades, na tentativa de arrumar emprego. Cerca de 200 milhões de trabalhadores rurais foram presos nas últimas duas décadas.

Em março de 2003, a empreitada terminou de forma trágica. O jovem Sun Zhigang, da província de Hubei, foi detido pela polícia por não ter documentos de identificação em Guangzhou, onde já estava empregado legalmente. Três dias depois, foi espancado até a morte, na prisão, enquanto esperava o processo de repatriação.

O caso vazou na imprensa chinesa e levou, nas limitações do governo comunista, a um movimento contra as injustiças do sistema estabelecido pelo regime, sobretudo a repatriação forçada. Os protestos culminaram com a aprovação de penas mais brandas para os migrantes que desafiarem a lei.

A proposta de reforma atual, no entanto, não abrange os maiores centros urbanos do país. Os trabalhadores rurais continuarão impedidos de tentar a sorte em Pequim ou Shangai. O governo argumenta que é preciso evitar o inchaço provocado pelos imigrantes.