O Globo, n. 32544, 13/09/2022. Brasil, p. 14

Duas vezes vítima

Arthur Leal


Uma criança de 11 anos de idade, moradora de uma área rural de Teresina, vive o drama de esperar um segundo filho fruto de violência sexual. No ano passado, após ter engravidado de um primo de 25 anos que a estuprou, amenina foi obrigada a prosseguir coma gestação por decisão dos pais e teve o bebê, mesmo respaldada pela lei que permite o aborto legal em casos como o dela. O primeiro agressor morreu pouco depois, em circunstâncias não reveladas. A identidade do novo abusador ainda é desconhecida.

De uma família pobre, a menina, que vivia com o pai e a avó, foi entregue a um abrigo. O pai e a mãe da garota estão se separando. Há cerca de um mês, ele pediu ajuda ao Conselho Tutelar, alegando dificuldades financeiras para mantêla. Foi na sexta-feira que conselheiros desconfiaram que poderia haver algo de errado com a menina e a levaram ao hospital, onde a nova gravidez foi constatada, com cerca de 10 semanas. O caso é investigado em sigilo pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente.

Mãe resiste

O pai foi ouvido ontem pela polícia, e segundo o G1, disse que ele e a filha têm interesse, desta vez, em garantir o aborto legal. A prefeitura de Teresina, no entanto, exige que os dois responsáveis assinem a autorização. A mãe segue contrária ao procedimento.

— Chamamos o pai para conversar, tentamos um aborto legal. Mas a mãe não aceitou de jeito nenhum — disse a conselheira Renata Bezerra, que acompanha o caso da garota, em entrevista ao G1.

— Ela já teve a infância roubada e no próximo dia 18 completa 12 anos, o início oficial da adolescência, comum a nova gestação. Agora vai ter a adolescência roubada. Mesmo com a primeira gravidez, ela tinha planos para estudar, para conduzir a vida dela normal. Agora recebeu esse baque.

Na primeira gravidez, a mãe, uma dona de casa de 29 anos, alegou que um médico disse que a menina correria risco de morte com um aborto. A criança, que estava com quase dois meses de gestação, também teria decidido não realizar o procedimento, segundo o jornal Folha de S. Paulo.

O quanto antes, melhor

O médico obstetra Jorge Rezende Filho, professor do Departamento de Medicina da PUC-Rio e diretor da Maternidade-Escola da UFRJ, diz que quanto antes a vítima de estupro decidir pelo aborto, menos correrá riscos. Mas Rezende pondera que os casos são específicos e variam de paciente para paciente.

— O mais dramático nessas situações é quando a vítima decide interromper com a gestação já avançada. Há poucos dias, chegou para a gente na Maternidade-Escola uma paciente com 27 semanas. Ela tem direito ao aborto legal? Claro que tem, mas não precisa ser tão tarde — afirma.

— O procedimento de interrupção com oito semanas é um, com 12 é outro, com 20 é outro. Torna-se mais invasivo, desnecessariamente, e mais sofrido para todo mundo, inclusive para a equipe médica.

O obstetra ressalva, no entanto, que, caso a menina e os pais decidam por dar continuidade à gravidez, os indícios mostram que ela não correria grandes riscos, sobretudo pelo fato de já ter tido uma criança.

— Ela está respaldada para ter a gravidez interrompida, ainda mais sendo considerada vulnerável. Mas, do ponto de vista médico, o risco nessa idade não seria algo impeditivo — explica. — O fato de ela engravidar já demonstra que existe alguma maturidade no aparelho reprodutor. Ainda mais quando se trata de uma segunda gravidez.

O aborto no Brasil é previsto em lei para casos em que a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há um diagnóstico de anencefalia do feto — decisão aprovada em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal. O procedimento é previsto no Código Penal desde 1940 e, nos três casos, é dever do SUS oferecer o serviço de forma gratuita e humanizada.

Em SC, aborto

Em junho, uma menina, também de 11 anos e vítima de estupro de vulnerável, após um imbróglio envolvendo o Ministério Público e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, conseguiu o direito de abortar. Mas foi preciso uma recomendação do Ministério Público Federal para o hospital realizar a cirurgia . Ela e a mãe enfrentaram a resistência de uma juíza e de uma promotora, que alegavam que a gravidez, na ocasião de 22 semanas, estava avançada, e tentaram convencê-las a prosseguir coma gestação. Ambas fora malvo de investigação nas respectivas corregedorias e ocaso teve repercussão internacional.

Apesar de a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, do Ministério da Saúde, apontar que o aborto em casos de estupro é permitido até a 20ª semana de gestação, podendo ser estendido até 22 semanas, desde que o feto tenha menos de 500 gramas, alei penal brasileira não prevê um tempo máximo de gestação para o procedimento.