O Globo, n. 32545, 14/09/2022. Economia, p. 15

Ameaça da fome

Cássia Almeida
Martha Imenes


As crianças sofrem mais com a fome no Brasil. Em 37,8% dos lares com crianças de até 10 anos, houve fome ou redução de quantidade e qualidade dos alimentos. Na média dos domicílios no país, esse percentual é de 30,7%. As estatísticas fazem parte de pesquisa da Rede Penssan, que reúne entidades como Ação da Cidadania, Oxfam, Vox Populi e Actionaid, e se dedica ao estudo da fome no país.

E a desigualdade regional se mostra nos números da pesquisa, que foi a 12.745 domicílios: no Maranhão, são 63,3% das casas com crianças nessa condição, enquanto no Espírito Santo, a parcela é de 13,9%. O quadro apresentado pela pesquisa é um retrato da crise atual, que deixou mais famílias sem ter garantia de que haverá comida na mesa, mas com desdobramentos no futuro.

Especialistas ressaltam que a falta de acesso a alimentos na infância afeta o desenvolvimento da criança.

— É preciso uma política de enfrentamento com foco na infância, conforme demonstrado nos dados. Elas estão sofrendo mais intensamente. A falta de alimentação adequada nessa fase da infância, com sacrifício de outros membros da família, provoca comprometimentos futuros, físicos e cognitivos —diz Francisco Menezes, consultor de políticas públicas da Actionaid.

É o futuro de Antônio Carlos, de 3 anos, e Tauane, de 1 ano e 6 meses que está em jogo. Filhos de Luana Stefany da Silva, de 20 anos, e Maik do Nascimento, de 28 anos, não têm tido a alimentação adequada, A família mora numa ocupação, com pouca infraestrutura.

— Hoje (ontem) comemos angu e feijão, era o que tinha. Sempre vamos atrás de carreatas (pessoas que doam alimentos pelo Centro do Rio), mas nem sempre tem —lamenta Luana, que cozinha em um “fogão” improvisado com madeiras. Para acender o fogo, usa álcool.

Nascimento é pedreiro, mas tem tido dificuldade para conseguir emprego e vive de trabalhos esporádicos.

— Moramos há dois meses na ocupação, não recebemos o Auxílio Brasil e dependemos da ajuda de terceiros para ter o que comer — diz Luana, que se cadastrou no programa social e tem esperança de conseguir entrar.

Merenda mais pobre

Se receber, como o Auxílio Brasil não diferencia famílias mais numerosas das que têm apenas um morador, terá apenas R$ 150 por mês para cada integrante da família. Esse desenho do programa acaba prejudicando os lares com crianças, “principalmente pelo expressivo número de mães solo com filhos”, alerta Menezes.

Outro ponto levantado pelo pesquisador é a redução significativa nos recursos para merenda escolar, que estão congelados desde 2017, com a inflação dos alimentos ultrapassando 43% desde o início da pandemia em 2020:

— Quando o Brasil saiu do mapa da fome, a alimentação escolar teve papel importante. A alimentação na escola vai piorando, com a substituição de alimentos de melhor qualidade nutricional para ultraprocessados, mais baratos.

O presidente Jair Bolsonaro vetou o reajuste de 34% nos recursos repassados para merenda escolar, incluído pelo Congresso no Orçamento, em meados do mês passado.

— A fome é mais gritante nas casas nas quais a mulher é responsável pela família com crianças. É retrato que vejo todo dia — diz Kiko Afonso, executivo da Ação da Cidadania.

Queda nas doações

A situação do mercado de trabalho dificulta vencer a fome. A pesquisa mostra que a fome é ameaça em 44,7% dos lares onde o responsável é um trabalhador informal ou alguém que está desempregado. Nos lares onde o trabalho é formal, esse percentual cai a 16,7%.

— Essas famílias com crianças pequenas são onde estão os desempregados, os informais, com baixa escolaridade e baixa capacidade de empregabilidade. Vencer isso vai exigir medidas interligadas, que abordem todos esses aspectos —alerta Ana Segall, médica sanitarista e pesquisadora da Rede Penssan.

Na média, a fome atinge 15,5% dos lares no país. Em 14 estados, a taxa é ainda maior. Em Alagoas, chega a 36,7%.

O temor de Afonso, da Ação da Cidadania, já está acontecendo: a naturalização da fome. As doações para a ONG criada por Betinho caíram de R$ 100 milhões em 2020 para R$ 15 milhões este ano:

— Como sempre aconteceu, a fome é naturalizada.

Confira os quatro níveis na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) usados nesses tipos de levantamento:

  • Segurança alimentar: A família tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades básicas, como moradia.

  • Insegurança alimentar leve: Há preocupação ou incerteza se será possível ter acesso a alimentos no futuro. A família acaba contando com uma qualidade inadequada de alimentação para ter quantidade suficiente de comida para todos. Ou seja, troca qualidade por quantidade.

  • Insegurança alimentar moderada: Em razão da falta de alimentos para fornecer a todos, as famílias reduzem a quantidade de comida ou há uma ruptura no padrão de alimentação, ou seja, na quantidade de refeições por dia, na qualidade do que vai para a mesa.

  • Insegurança alimentar grave: A família passa fome (sente fome por falta de dinheiro para comprar alimentos, faz apenas uma refeição ao dia ou fica sem comer um dia inteiro).