Título: Transparência violentada
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 28/11/2005, Opinião, p. A11

Se alguém ainda achava que a vitória esmagadora do Não no último referendo denota que o Brasil não é tão violento assim, enganou-se. A vitória expressiva do Não indica que a consciência da violência que campeia no país, sobretudo nas grandes metrópoles mais desenvolvidas, é enorme. E o voto vitorioso foi, na verdade, o voto do medo. No entanto, as notícias recentes dos jornais pós-referendo indicam que, além do medo, a votação do último dia 23 de outubro ''referendou'' outra coisa ainda menos nobre que o medo, se é que isto é possível: a falta de transparência e espírito cívico por parte daqueles que capitanearam a campanha do Não.

Havendo recebido gordo subsídio das duas maiores indústrias de armas do país - a Taurus e a Companhia Brasileira de Cartuchos -, a frente do Não gastou quase o dobro do que os partidários da vida, ou seja, do Sim. Aos jornais, o presidente da frente pelo direito à legítima defesa, que poluiu as paredes da cidade com seus outdoors, declarou sem pudor que o financiamento milionário que levou o Não à vitória só poderia mesmo ter saído das duas indústrias interessadas e não ''do seu bolso''.

Mas não pára aí a nebulosidade da vitória dos instrumentos da morte. Segundo o que informa a mídia, os dirigentes da campanha do Não, tão visíveis na campanha, tornam-se invisíveis no momento de prestar contas ao Tribunal Superior Eleitoral no prazo regulamentar, ou seja, até um mês após a votação. Configura-se, portanto, crime eleitoral, escondendo-se as pessoas físicas atrás de frentes parlamentares que não podem ser punidas.

Parece claro, como bem constatam alguns parlamentares, entre os quais o deputado Raul Jungmann, que a frente do Não estava defendendo o lucro das empresas de armamentos e não os ''direitos dos cidadãos à própria defesa'' como alardeava mentirosamente pelas cidades. E parece claro igualmente que a transparência que deveria caracterizar uma campanha desse teor ficou obscurecida por interesses mais que opacos e nebulosos.

Venceu o Não e a violência campeia, impune e armada, pelas ruas do país. Enquanto isso, o Ministério da Saúde acaba de publicar estarrecedora pesquisa que aponta São Paulo como o município mais violento do país, seguido de perto pelo Rio de Janeiro. Liderando o ranking, ali aparecem - agora, sim, com toda transparência - as mortes violentas por armas de fogo. Em homicídios ou suicídios, são as principais causadoras da lista macabra de muitos milhares de homicídios e suicídios. As armas que o referendo poderia ter destinado aos depósitos, onde seriam transformadas em instrumentos mais úteis e pacíficos, continuam levantando sua garganta de fogo e despejando sua descarga mortal sobre os cidadãos das grandes cidades. E o Brasil perdeu uma oportunidade histórica de dar um exemplo ao mundo de como se constrói um grande país, começando por ferir de morte a violência pela arma pacífica e legítima do voto.

Diante desses dados, impõe-se uma reflexão profunda. Não podemos aceitar a derrota como definitiva e parar de lutar pela vida e pela paz. Carecemos de profetas, de línguas afiadas e transparentes, que nos digam, como outrora Jeremias ao povo de Israel: ''Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: Eis que virarei contra vós as armas de guerra que estão nas vossas mãos''. Ou ainda Ezequiel, na dor do exílio, buscando consolar o povo e mostrar-lhe o caminho da vida: ''E os habitantes das cidades de Israel sairão, com as armas, acenderão o fogo e queimarão os escudos e os paveses, os arcos e as flechas, os bastões de mão e as lanças; acenderão o fogo com tudo isso por sete anos; e não trarão lenha do campo, nem a cortarão dos bosques, mas com as armas acenderão o fogo''.

Para isso deverão servir as armas: para acender o fogo que cozerá o alimento e trará conforto aos estômagos; para preservar os bosques e a natureza, queimando o que não serve mais à morte, mas sim à vida.

A transparência violentada pelos escusos meandros onde se esconde a campanha do Não ensina-nos uma vez mais como é verdadeira a reflexão do professor Domício Proença, da COPPE-UFRJ, especialista no tema da violência armada que, parafraseando o lendário Garganta Profunda, protagonista do famoso episódio de Watergate, nos Estados Unidos, diz que para entender o círculo vicioso da violência há que seguir o dinheiro.

''Follow the money'' (sigam a pista do dinheiro), aconselhou àqueles que se propunham a desvendar o obscuro mistério que envolvia a Casa Branca. Para entender a vitória do Não, como comprovam as últimas notícias, há que seguir o dinheiro.

Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, escreve às segundas-feiras nesta página