Valor Econômico, v. 20, n. 4970, 28/03/2020. Internacional, p. A13
Os desafios institucionais no combate ao coronavírus
Veio do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, uma das poucas declarações minimamente tranquilizadoras de uma autoridade federal na semana passada. Em entrevista ao Valor, o ministro assegurou que, ao que lhe consta, “não estão em cogitação” no governo medidas de exceção como o estado de sítio.
É fato que a assertiva não afasta totalmente a possibilidade de discussões desse tipo estarem em curso no Executivo sem que o ministro da Justiça esteja ciente. Isso por si só já demonstraria falta de coesão do governo.
A história do Ministério da Justiça remonta ao período do Império e o posto sempre foi um dos principais cargos de confiança do chefe de governo. Seus ocupantes passaram os anos acumulando funções diretamente ligadas ao aprimoramento das instituições do Estado e à harmonia entre os Poderes.
Neste governo, seu titular já esteve mais próximo do presidente da República. Mesmo assim, não deixa de ser relativamente reconfortante ver que as prioridades do Ministério da Justiça em grande parte convergem com as emanadas do Ministério da Saúde, principal executor das medidas de combate ao novo coronavírus. Entre essas iniciativas estão, por exemplo, o estabelecimento de restrições em portos e o uso de agentes da Força Nacional de Segurança Pública em ações de apoio no combate e na prevenção da covid-19.
No atual momento, porém, crescem as divergências entre o governo central e os demais entes da federação. Também são incertos os riscos que podem surgir desse desencontro institucional.
Ainda assim, a decretação de estado de sítio seria uma medida extrema que em nada contribuiria para a manutenção do ambiente necessário à aprovação de todas as medidas de combate à pandemia e de enfrentamento aos seus efeitos socioeconômicos. Afinal, segundo a legislação brasileira, durante a vigência de intervenção federal, do estado de defesa ou do estado de sítio, a Constituição não pode ser emendada. Algumas ideias postas à mesa são justamente emendas constitucionais.
A questão vai além. A decretação de estado de sítio pressupõe a autorização do Congresso, uma instituição frequentemente hostilizada pelos apoiadores do presidente da República, e a liberação para que o chefe de governo adote uma série de medidas coercitivas.
Pela gravidade de sua natureza, tais medidas precisam ser descritas: obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio; intervenção nas empresas de serviços públicos; e requisição de bens. Todas elas constam do artigo 139 da Constituição
É preciso registrar, contudo, que ideias de teor autoritário não partem apenas de aliados do presidente Jair Bolsonaro.
Existe no Congresso, por exemplo, a intenção de se aprovar um projeto para permitir a realização de empréstimos compulsórios. Esses recursos seriam buscados junto a empresas com patrimônio superior a R$ 1 bilhão, que pagariam 10% do lucro registrado no ano passado.
À divulgação da articulação para a aprovação dessa questionável iniciativa, duas informações positivas se seguiram. A primeira foi que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, é contra. Logo na sequência, ficou claro também que a equipe econômica tampouco a subscreverá.
O combate à covid-19 representa um dos maiores desafios recentes para autoridades de todo o mundo. No Brasil, seu enfrentamento ganha ainda mais urgência, pois a economia já tentava se recuperar de um prolongado período em que permaneceu desaquecida. Há um alto grau de informalidade e grande parcela da população em situação de vulnerabilidade.
Mesmo assim, o momento não pode ser usado para que propostas arbitrárias ganhem espaço tanto na pauta do Executivo quanto na agenda do Parlamento. Este deve ser um princípio fundamental a conduzir a atuação de todos as autoridades, que, legitimamente eleitas, precisarão agir com responsabilidade para que este período seja depois revisitado por historiadores e reconhecido, sim, como um momento crítico. Mas não como um capítulo danoso ao ambiente de negócios e ao estado democrático de direito.