Valor Econômico, v. 20, n. 4970, 28/03/2020. Internacional, p. A15

BCE precisa financiar déficits da covid-19

Paul de Grauwe


​A pandemia de coronavírus desencadeou uma oferta negativa combinada com um choque de demanda de intensidade sem precedentes. Ambos estão tendo um impacto significativo sobre a produção de bens e serviços, e como a renda de todos, no fim das contas, deriva da produção, a renda das famílias está caindo rapidamente. Com muitas economias já em uma espiral de queda e caminhando para uma recessão, o perigo é o declínio se tornar uma derrocada autoperpetuada e cada vez mais profunda.

Os choques combinados da oferta e demanda deverão provocar muitos “efeitos-dominó”. Companhias com grandes custos fixos que sofrerem uma queda súbita das receitas rapidamente enfrentarão dificuldades financeiras, ou mesmo a falência. Quando isso acontece, os bancos e outras entidades que emprestaram dinheiro a essas companhias também se deparam com problemas. É por isso que grandes choques econômicos sempre podem levar a crises bancárias.

Mas a queda das peças do dominó não para aí. Os governos também podem enfrentar perigos fiscais quando interferem para amenizar a crise. No caso da atual pandemia, os governos nacionais terão de salvar empresas da falência, garantindo apoio financeiro e subsídios, ajudando os trabalhadores via financiamento de regimes de desemprego temporários e até mesmo resgatando grandes bancos. O pior é que tudo isso terá de ser feito num momento de receitas fiscais declinantes, o que significa que os déficits e o endividamento do setor público vão disparar.

Vimos como esse efeito-dominó opera, durante a crise financeira de 2007-2008. A diferença agora é que o choque inicial não começou nos  mercados financeiros e depois se espalhou para a economia real. Em vez disso, o atual choque brotou da economia real e derrubou os mercados financeiros. Mas, como aconteceu no passado, esta crise exige medidas urgentes para se ampliar o espaço entre as peças do dominó em queda. Pense nisso como um “distanciamento social” macroeconômico.

Como seria isso na prática? Primeiro, os governos nacionais precisam intervir, fornecendo apoio financeiro para empresas e famílias em dificuldades e cujos ganhos estão ameaçados. A maioria dos governos europeus já parecem dispostos a fazer isso. O problema é que as expansões fiscais em larga escala por Estados-membros da zona do euro poderão se mostrar complicadas. Assim, é essencial que o Banco Central Europeu (BCE) intervenha para evitar a queda da última peça do dominó - os governos dos Estados-membros.

Como não têm escolha a não ser apoiar empresas debilitadas, bancos sem liquidez e famílias com problemas, os governos nacionais poderão entrar num território perigoso. Quanto mais suas dívidas aumentarem, maior será o risco de os detentores de seus bônus entrarem em pânico, como vimos na crise da dívida soberana de 2010-2012. E os países que estão experimentando os maiores aumentos de dívidas como resultado da “coronacrise” - Itália, Espanha e França -, estão entre as quatro maiores economias da zona do euro.

Para afastar o risco de pânico no mercado de bônus, o BCE deveria estar se preparando para comprar bônus de governos em dificuldades. Durante a crise de 2012, o BCE preparou o terreno para uma resposta dessas com seu Programa de Transações Monetárias Definitivas. Mas este mês a presidente do BCE, Christine Lagarde, pareceu sugerir que o banco não iria resgatar Estados-membros endividados, somente para recuar em suas afirmações dias depois. Mesmo assim, como sua declaração inicial foi aplaudida pelo presidente do Bundesbank, Jens Weidmann, ainda restam sérias dúvidas se o BCE vai oferecer um apoio direto aos governos nacionais.

De fato, o BCE prometeu atuar como emprestador de última instância para os bancos europeus e reativou seu programa de afrouxamento quantitativo (QE, na sigla em inglês), por meio do qual ele comprará bônus soberanos adicionais nos mercados secundários. O QE certamente proporcionará um certo alívio aos governos nacionais, mas não será suficiente. O BCE terá de dar mais um passo, preparando-se para comprar bônus soberanos nos mercados primários, efetivamente emitindo moeda para financiar os déficits fiscais dos Estados-membros durante a crise.

Se o BCE se engajar no financiamento monetário dos déficits fiscais dos

Estados-membros, a ele provavelmente se juntarão muitos outros bancos centrais mundiais. A virtude dessa estratégia é que ela pouparia os governos nacionais de terem de emitir dívida nova. Como toda a dívida nova seria monetizada, a crise não aumentaria as relações de endividamento sobre o PIB dos governos. Para os países que sofrerem mais com a pandemia, a ameaça de pânico entre os detentores de bônus seria removida da equação.

Sim, pode-se levantar muitas objeções a essa proposta. Juridicamente, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia proíbe o BCE de se envolver no financiamento monetário de déficits fiscais nacionais. Mas os advogados do BCE, com sua perspicácia ilimitada, certamente poderão encontrar uma maneira de contornar essa restrição. Afinal, o próprio futuro da zona do euro depende disso.

Pode-se também discordar baseado em que o financiamento monetário produziria inflação. Mesmo assim, sob as atuais circunstâncias, simplesmente não há como isso ocorrer. Na verdade, a Europa enfrenta agora uma espiral deflacionária; o financiamento monetário atuaria contra essa tendência. Assim que a dinâmica deflacionária fosse interrompida, o BCE poderia suspender seus financiamentos monetários.

Cedo ou tarde, o BCE precisa aceitar o fato de que o financiamento monetário em apoio às despesas públicas é necessário não só para amenizar a crise da covid-19, como também para evitar um ciclo deflacionário que poderia desmantelar a zona do euro. É hora de pensar fora da caixinha. (Tradução de Mario Zamarian)

Paul De Grauwe é professor de Economia Política Europeia da London School of Economics. Copyright: Project Syndicate, 2020.