Valor Econômico, v. 20, n. 4970, 28/03/2020. Opinião, p. A14

Com a crise, mudanças à vista na economia e política

 Alexandre Guimarães


A crise decorrente do coronavírus vem abalando pilares do sistema econômico mundial. Considerando que venha a ser controlada e a normalidade econômica restaurada, como parecer ter ocorrido na China, surge a questão de quais mudanças acarretará. Mudanças profundas ocorrerão em diversas dimensões da vida humana. Esse artigo se atém às transformações nas esferas política e econômica. O capitalismo em sua fase atual acumulou diversas contradições que, embora não enfrentadas após a crise de 2008, podem ser modificadas agora.

Em um livro clássico, Karl Polanyi1 apontou importante singularidade da civilização do século XIX, quando pela primeira vez a economia passou a ocupar um espaço central e desproporcional no tecido social. Os mercados assumiram papel sem precedentes, do seu funcionamento passando a depender a sobrevivência das pessoas e da sociedade.

Entretanto, a ilusão de que o mercado regulava a vida social trouxe também riscos. As flutuações inerentes ao ciclo econômico poderiam comprometer a subsistência das pessoas, clamando por políticas de proteção social.

Essa tensão entre os avanços das forças de mercado e a reação da sociedade sintetiza aspectos centrais da emergente sociedade capitalista. Nos anos de 1930, os efeitos da Grande Depressão acarretaram uma expansão sem precedentes do Estado, tanto na organização da economia como na proteção social. Durante a Segunda Guerra Mundial, coordenação e regulação econômica se fortaleceram. No pós-guerra, um capitalismo bastante regulado protagonizou o momento de maior prosperidade da história, acarretando progresso material e igualdade, até ser abalado por nova crise nos anos de 1970.

A crise atual, ao impedir as pessoas de circular e as empresas de funcionar, ameaça a subsistência de milhões de cidadãos. A preservação da economia e da sociedade requer a intervenção estatal para socorrer empresas e distribuir recursos. Exigirá enorme capacidade de atuação.

Em face das prováveis implicações, a primeira vítima será o neoliberalismo. A riqueza financeira está evaporando, assim como a credibilidade na “sabedoria” dos mercados. Em face do papel a ser desempenhado pelos serviços públicos e pela regulação estatal, será impossível sustentar a imagem de um Estado letárgico e ineficiente como fonte de todos os males. Um cenário pós-crise tende a ser o de um Estado mais atuante e de um sistema financeiro mais regulado.

Outra mudança diz respeito ao fim do isolacionismo. O mundo, cada vez mais interligado em termos de fluxos de pessoas e mercadorias, tem que melhor se integrar em termos políticos e regulatórios. Há toda uma agenda que é internacional, incluindo meio ambiente, crime organizado, proliferação nuclear, tráfico de drogas e epidemias, além da regulação comercial e financeira. A necessidade de os países chegarem a acordos nessas questões, que sofreu reveses nos últimos anos, é realçada de forma extrema pela crise.

Tendem a cair os líderes populistas que se elegeram prometendo soluções simplistas para problemas complexos. Em face a uma questão gravíssima, bravatas e inimigos imaginários pouco ajudam. A reação desastrosa, ao desdenhar a crise, pode significar a sentença de morte das respectivas pretensões políticas.

Acredito que o impasse possa engatilhar novo fortalecimento do Estado de bem-estar social. A explicitação dos riscos tornará difícil recuos nos sistemas nacionais de saúde. A ajuda conferida aos mais vulneráveis, assim como a disposição de pagar salários para as pessoas ficarem em casa, pode sinalizar para o reforço do papel do Estado como garantidor. de renda para aqueles incapazes de obtê-la no mercado de trabalho.

Em outras palavras, a crise, escancarando vulnerabilidades das pessoas em geral, tende a fortalecer a solidariedade, que vinha sendo enfraquecida pelo individualismo crescente inerente à nova etapa do capitalismo. Os países são hoje muito mais ricos do que eram algumas décadas atrás. As limitações para o financiamento do bem-estar social não são econômicas, mas decorrentes da indisposição dos indivíduos em pagar os impostos necessários.

Deve-se destacar que a questão vai além da oscilação do pêndulo na direção de mais Estado e menos mercado. A ação do Estado precisa ser eficiente e transparente, evitando práticas corporativistas. É preciso um novo pacto com a sociedade, explicitando direitos e deveres. Os países que melhor vem negociando esse pacto são os escandinavos, possíveis paradigmas para uma nova fase.

Outra dificuldade relaciona-se ao financiamento. Impostos serão elevados, mas isso não elimina os riscos fiscais. O endividamento excessivo vem sendo destacado há algum tempo, bem antes da crise atual e de seus efeitos. Cresce o risco de calote das respectivas dívidas, em prejuízo dos investimentos financeiros e dos poupadores em geral.

Enfim, enfatizo possíveis desdobramentos para países com grande setor informal, alta desigualdade de renda e limites na capacidade estatal, em que a crise tende a ter efeitos mais graves sobre as parcelas mais pobres. Isso requer precisa e substancial capacidade de intervenção. Se falhar, pode acarretar enorme sofrimento, aumento do crime e ameaças à ordem social. Seria uma forma drástica de explicitar o que todos sa a profunda injustiça e a falta de condições dignas que marca enorme parcela da sociedade.

Em síntese, as mudanças podem levar à morte do neoliberalismo, do isolacionismo e do populismo, vindo a reforçar a dimensão solidária e clamando por novas formas de conciliação com o princípio do lucro. Pode, por sua vez, agravar as tensões sociais e as injustiças e vir, apesar dos efeitos negativos no curto prazo, a fortalecer o comprometimento de enfrentar as enormes desigualdades inerentes à sociedade.

* Karl Polanyi, A Grande Transformação - as origens de nossa época. Rio: Campus, 1980

Alexandre Queiroz Guimarães é Ph.D pela Sheffield University e professor da Fundação João Pinheiro e da PUC-MG.