O Globo, n. 32548, 17/09/2022. Brasil, p. 12

Recuo no fundamental

Bruno Alfano
Paula Ferreira
Pâmela Dias


O percentual de crianças que não sabem ler e escrever nem mesmo palavras isoladas mais que dobrou em apenas dois anos. Dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), divulgados ontem pelo Ministério da Educação, mostram que em 2019 o país tinha 15,5% das crianças do 2º ano com esse nível de aprendizado. Em 2021, o índice saltou para 33,8%.

A etapa em que houve maior queda na aprendizagem foi exatamente na avaliação de Língua Portuguesa no 2º ano do ensino fundamental. Em 2019, as crianças obtiveram 750 pontos na área. Em 2021,a média caiu para 725,5 pontos. Na Matemática, a queda foi de 750 para 741.

— Falar em geração perdida é um equívoco, mas o Saeb põe luz nesse problema. A intensidade pode não ser exatamente essa, mas a variação é tão grande que precisa orientar todas as políticas. É preciso um MEC mais atuante para identificar boas práticas que deram resultado no país e dar escala para elas — recomenda o superintendente executivo do Instituto Unibanco, Ricardo Henriques.

Desde o começo da pandemia, com o fechamento das escolas, especialistas em educação e professores chamam atenção para a dificuldade da alfabetização a distância. Na apresentação dos dados ontem, técnicos do Inep também ressaltaram a maior necessidade da mediação de um professor presencial como fundamental para garantir a aprendizagem nesta etapa. — Essas crianças precisam de ajuda para superar essas lacunas e estão sentadas agora em turmas de 3° ano de todo Brasil. Estamos em tempo e condições de intervir na superação dessa lacuna observada — afirmou Clara Machado, servidora do Inep responsável pelo Saeb.

“Sinais de esgotamento"

Quando tinha 6 anos, Eric Ruiz começava sua trajetória escolar, em 2020, numa escola privada de São Paulo. O menino acabou voltando a estudar somente em agosto de 2021, já no 1º ano do ensino fundamental. Em 2022, ele precisa cumprir uma rotina exaustiva para recuperar o tempo perdido.

— Ele tem as aulas normais e o reforço duas vezes por semana. Mas a professora já chamou a atenção para sinais de esgotamento. Tem dia que ele não consegue brincar, de tantos deveres, e ele é muito novo para isso — conta Irene Ruiz, de 38 anos, mãe de Eric. — E ainda tenho o privilégio de poder pagar uma escola. A filha de uma amiga só consegue escrever o nome e a professora disse que não consegue alfabetizá-la dando conta de tantos alunos na turma.

Patamar de 2015

É a segunda vez que o 2º ano do fundamental foi avaliado, assim como as aprendizagens em Ciências Humanas e da Natureza no 9º do fundamental, que também registraram queda. O exame foi por amostragem. Além disso, o Saeb avalia Língua Portuguesa e Matemática do 5º e 9º ano do fundamental (anos iniciais e finais do ciclo) e do 3º ano do ensino médio, de forma censitária nas escolas públicas e por amostragem nas privadas. Em todas, houve queda de desempenho. — Houve uma perda maior nos anos iniciais e finais do ensino fundamental. E foram mais acentuadas na área de Matemática — diz Clara Machado, responsável pelo Saeb no Inep. É como se o país tivesse perdido os progressos dos seis últimos anos, regredindo em algumas áreas a patamares de aprendizagem de 2015. Cerca de 5,3 milhões de estudantes participaram do Saeb em 2021 em 72 mil escolas públicas e privadas do país.

— O que chama a atenção é um padrão que reproduz achados de avaliações em outros países: os alunos mais impactados foram os mais novos, em especial em fase de alfabetização. Matemática é a disciplina com maiores quedas no aprendizado. É preocupante porque nosso ponto de partida já era muito abaixo do esperado —afirma Daniel de Bonis , diretor de Conhecimento, Dados e Pesquisa da Fundação Lemann. Para o ministro da Educação, Victor Godoy, os resultados apresentaram uma já esperada queda maior na alfabetização. Mesmo assim, Godoy disse ontem que há o que se comemorar, diante das condições de ensino na pandemia:

— É senso comum que para alfabetizar uma criança é preciso ter conhecimento de como fazê-lo. Já era esperado com o fechamento das escolas que a etapa fosse a mais afetada. A boa notícia é que os impactos para demais etapas da educação tiveram efeito menor do que Isso se deve muito pelo trabalho feito em todo território nacional de buscar soluções alternativas O Ideb, principal indicador da educação básica, também foi divulgado. Ele é calculado a cada dois anos para todas as etapas de escolarização, a partir das notas das redes nas provas do Saeb e do rendimento das escolas —a quantidade de aprovações, reprovações e evasões na unidade de ensino. Houve pouca variação em relação 2019, mas o resultado não reflete a realidade por ter sido influenciado pela aprovação automática, que foi adotada de forma diferente nas redes de educação de estados e municípios.

O ciclo divulgado ontem incluiu pela primeira vez o período da pandemia, quando escolas em todo o país foram fechadas. Nesse tempo, o Conselho Nacional de Educação viabilizou a flexibilização do ano letivo e da adoção de atividades remotas pelas escolas. Em outubro de 2020, o CNE permitiu que as redes fizessem afusão dos anos letivos de 2020 e 2021. Foi uma estratégia para a escola ter a oportunidade de recuperar as aprendizagens perdidas em 2020 durante o ano letivo de 2021.

Estados e municípios adotaram diferentes critérios em relação à aprovação dos estudantes. Por isso, especialistas fazem a ressalva de queé preciso analisar os dados com cautela, uma vez que a aprovação automática de significativa parte dos estudantes distorce o resultado do índice — fazendo com que ele aumente artificialmente, mesmo com queda de aprendizagem. Por isso, a análise desses resultados, neste ano, está focada no Saeb. Ainda assim, é preciso levar em conta que aprova foi aplicada em novembro de 2021, quando parte das escolas ainda estava fechada. Com isso, diferentemente de outros anos, a taxa de participação no Saeb também foi afetada pela pandemia e ficou em torno de 71%. Além disso, diferentes estados e municípios e etapas de ensino tiveram variação nessa taxa. O ensino médio, por exemplo, teve os maiores problemas de faltas.

Problema de comparação

Em uma nota comentando o resultado do Saeb, o Todos pela Educação lembrou que “é razoável supor que os alunos que não estavam presentes nos dias de prova em novembro e dezembro de 2021 são aqueles de menor nível socioeconômico, que estavam acompanhando menos as atividades escolares ou já haviam abandonado os estudos”. Para a organização, essa “seleção natural” dos estudantes também pode influenciar as médias das redes.

Em Roraima, por exemplo, nenhum município atendeu aos critérios mínimos (50% de adesão ao Saeb) de participação no ensino médio. Há dois anos ,93% haviam feito aprova. Mato Grosso (18%), Rio Grande do Norte (23%) e Bahia (28%) também não atingiramo patamar necessário para entrar nos cálculos nacionais. Especialistas em educação pedem cautela com comparações utilizando os dados deste ano.

— O cuidado deve estar na contextualização dos resultados. As redes de ensino foram afetadas diferentemente pela pandemia, e tomaram decisões administrativas e educacionais que podem refletir nos dados, inclusive sobre calendário escolar — afirma Bonis.