O Globo, n. 32549, 18/09/2022. Política, p. 12

Oração e voto

Bernardo Mello
Natália Portinari


Vinte e uma igrejas evangélicas foram abertas por dia no Brasil — quase uma por hora — ao longo da última década, indicam dados inéditos compilados pelo GLOBO. Na ausência de versão atualizada do Censo Demográfico, os números são a evidência concreta de que a presença do grupo religioso no país, que superou um quinto da população em 2010, acelerou seu ritmo no período mais recente: o crescimento da quantidade de templos superou em 12% o avanço da década anterior, que havia marcado até então o maior boom protestante na história brasileira.

A cada três igrejas evangélicas existentes hoje no país, uma foi inaugurada nos últimos dez anos. O levantamento marca o início de uma série de reportagens sobre a expansão evangélica, fenômeno que obriga as campanhas do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Lula (PT) a fazer gestos diários para o público, seja com visitas a pastores em igrejas ou em entrevistas para podcasts direcionados ao segmento. Os textos vão detalhar características que unem e diferenciam algumas das principais denominações, lideranças e etapas do movimento evangélico. As informações foram coletadas pela organização Brasil.io junto à Receita Federal, reunindo as pessoas jurídicas classificadas como organizações religiosas. Nos últimos 30 anos, o crescimento dos templos evangélicos no Brasil acompanhou o aumento do protagonismo político do segmento no país. Até o início dos anos 1990, quando o Censo apontou que 9% dos brasileiros se declaravam evangélicos, havia 30,2 mil igrejas no país. Desde então, o número de novos templos cresceu a cada década, até chegar, em maio, à marca de 178.511 CNPJs cadastrados.

Desde 2002, a bancada evangélica eleita no Congresso aumentou mais de 60% — 92 parlamentares do bloco conseguiram cadeiras em 2018, segundo levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Nesse período, dois partidos de centro-direita — Republicanos, com 48 cadeiras, e PL, com 43 — foram a principal guarida desses parlamentares, indicativo concreto da dificuldade que a esquerda tem em arregimentar apoios no segmento. A Assembleia de Deus, maior denominação em número de fiéis, já contou com 110 deputados e senadores, de acordo com o Diap.

Dívidas perdoadas

A bancada evangélica vem sendo uma das engrenagens para alterações legais que beneficiaram entidades religiosas. Com histórico de conquistas pontuais em diferentes governos, desde a imunidade tributária de templos assegurada pela Constituição de 1946, a primeira pós-era Vargas, as igrejas multiplicaram suas vitórias no Legislativo desde 2019.

A lista recente inclui, por exemplo, o perdão de dívidas de igrejas, em iniciativas capitaneadas por parlamentares evangélicos — que hoje miram novos projetos, prevendo desde isenções em remessas para o exterior até imunidade sobre todos os imóveis e serviços com vínculo religioso, em demandas a serem resolvidas pelo próximo governo. Em outra ponta, diretamente com o Executivo, houve uma série de passaportes diplomáticos concedidos a líderes religiosos. Pesquisadores e lideranças de igrejas avaliam que o crescimento evangélico ocorreu em vácuos de assistência espiritual e material, especialmente a partir da década de 1970, quando o Brasil tornou se um país majoritariamente urbano. Tanto nas grandes cidades quanto em municípios menores, bolsões marcados pelo avanço do crime organizado, pobreza e esvaziamento econômico passaram a receber atendimento de igrejas evangélicas em cultos e em ações sociais, que incluíam alfabetização e distribuição de cestas básicas.

 Nesses locais, poder público e Igreja Católica não conseguiram se fazer representar com a intensidade dos evangélicos, cujos processos de formação de pastores, de abertura de igrejas e de interpretação do texto bíblico foram acelerados pela pluralidade e descentralização do movimento protestante. Só na última década, entre 2013 e 2022, foram 71,7 mil unidades abertas — volume que corresponde a 80% dos novos templos de todas as religiões cadastrados no período. Desde os anos 1970, só houve uma abertura maior de igrejas católicas do que evangélicas em 1971, quando os católicos abriram 1.702 novos CNPJs, e os evangélicos, 918.

— À época do Censo de 2010, com os evangélicos crescendo 0,7% ao ano e os católicos caindo 1%, projetava-se uma ultrapassagem em 2040. Desde então, o ritmo se acelerou. Hoje, a projeção é que os evangélicos sejam maioria em 2032 — afirma o sociólogo José Eustáquio, doutor em demografia pela UFMG.

— A abertura de templos é fundamental para atrair fiéis. A transição religiosa começa pela periferia, onde outras religiões não se fizeram presentes no mesmo ritmo da concentração populacional. Em contraposição ao estereótipo de “rebanho”, atribuído de forma pejorativa a fiéis, o levantamento expõe o caráter multifacetado do salto evangélico no Brasil. A liderança do ranking de criação de templos, com 34 mil aberturas nesta década, é do conjunto de igrejas evangélicas “diversas”, que não se enquadram em nenhuma das principais denominações do país. São ramos e ministérios, em muitos casos, com uma dezena de templos ou menos.

O antropólogo Flávio Conrado, da Casa Galileia, agência que promove ações voltadas ao público cristão, observa que lideranças evangélicas também mostraram “capacidade de adaptação à expansão dos meios de comunicação” de massa. Esta foi uma das marcas do pentecostalismo, movimento que se afastou da tradição “histórica” protestante em questões doutrinárias e estratégias de expansão — e que também se dividiu, por sua vez, em ao menos três “ondas”.