Valor Econômico, v. 20, n. 4970, 28/03/2020. Finanças, p. C1
‘Poderes ao BC devem ser temporários’
Entrevista: Mario Mesquita, Economista-chefe do Itaú Unibanco
O
economista-chefe do Itaú Unibanco, Mario Mesquita, diz que o aumento dos
poderes do Banco Central (BC) para atuar no mercado, incluindo a compra de
títulos privados, é necessário e ajuda a combater os efeitos da crise do
coronavírus, mas ele destaca a importância de esse tipo de faculdade ser
bem limitada na legislação para impedir um eventual mau uso no futuro.
“Acho
muito importante que as condições que permitem esse tipo de atuação do Banco
Central sejam bem explícitas, bem claras, e que sejam só em momentos realmente
excepcionais”, afirma Mesquita. “As travas que temos hoje não estão aí por
acaso. No passado, tínhamos uma simbiose entre BC e Tesouro que contribuiu para
aquela grande inflação que tivemos no Brasil durante muito tempo.”
Mesquita
refere-se ao Projeto de Emenda Constitucional (PEC) anunciado na sexta-feira,
que permite que a autoridade monetária compre títulos privados para dar
liquidez ao mercado de capitais. Hoje, isso é expressamente vedado pela
Constituição.
Embora
a compra de ativos pelo BC se assemelhe aos programas de expansão
quantitativa (QE, na sigla em inglês) adotados por bancos centrais de países
desenvolvidos, Mesquita não considera que o objetivo da nossa autoridade
monetária seja estimular a demanda. Para ele, uma diferença fundamental é que,
mundo afora, os juros nominais estão perto de zero, enquanto por aqui ainda há
espaço para eventualmente baixá-los.
De
qualquer forma, a PEC pode criar instrumentos para que, caso no futuro os juros
sejam reduzidos a zero no Brasil, o Banco Central possa fazer operações de
expansão quantitativa.
Mesquita
diz que, nesse momento, a tarefa primordial do Banco Central não é cortar
os juros básicos, mas prover liquidez ao mercado e fazer o crédito chegar na
ponta. Um exemplo disso, afirma, é a medida anunciada na sexta-feira em que o
Tesouro coloca recursos públicos para viabilizar o financiamento bancário
a pequenas empresas. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor:
Como o sr. avalia as medidas anunciadas pelo Banco Central para financiar
folhas de pagamento e para comprar títulos privados?
Mario
Mesquita: Os autônomos estão sendo atendidos diretamente com o pacote fiscal.
Provavelmente vai se usar a tecnologia de transferência de recursos da Caixa
Econômica Federal, que tem muita capilaridade, sabe fazer isso por causa do
Bolsa Família. O financiamento à folha de pagamentos vai lidar com o empregado
formal das pequenas e médias empresas. Tem também as grandes empresas, que
passaram a se financiar, mais recentemente, de forma mais intensa no mercado de
capitais. O conjunto cobre em tese o setor empresarial e deve contribuir para
manter o emprego, se avançar rápido.
Valor:
A velocidade de implementação é importante?
Mesquita:
Será importante fazer isso o mais rápido possível. Estamos chegando ao final do
mês, período de folha de pagamento de salário, as empresas tendo um baque
grande de receitas. É possível que já tenha algumas com dificuldades. Se deixar
para outra rodada de fechamento de folha de pagamentos, de abril, a coisa fica
mais complicada ainda. Um número
maior de empresas pode ter dificuldades.
Valor:
E a PEC que autoriza a compra de títulos privados?
Mesquita:
É bastante inovadora. Ela ataca algumas travas para atuação do Banco Central,
que historicamente limitavam muito o poder em certos momentos de crise. Não
inviabilizava a atuação, pois o Banco Central encontrou ao longo dos anos
formas de gestão de crise. A PEC pode dar mais flexibilidade em momentos de
crise, por isso ajuda. Acho muito importante que as condições que permitem esse
tipo de atuação do Banco Central sejam bem explícitas, bem claras, e que sejam
só em momentos realmente excepcionais. As travas que temos hoje não
estão aí por acaso. No passado, tínhamos uma simbiose entre BC e Tesouro
que contribuiu para aquela grande inflação que tivemos no Brasil durante muito
tempo. Para minimizar esse risco, é claro que a lei deve prever que isso só
pode acontecer em circunstâncias muito excepcionais, daquelas que acontecem uma
vez ou outra a cada geração. Nada pode ser decidido automaticamente. A
proposta dá ao Congresso a responsabilidade de, primeiro, decretar que a
situação é de calamidade, para que depois a flexibilidade do Banco Central
aumente. Acho que isso é muito importante.
Valor:
Tem que ser excepcional para evitar o mau uso da regra?
Mesquita:
O BC tem sido muito proativo, muito criativo. Realmente a atuação está
excepcional. Tem que ser assim mesmo na crise. Essa medida é transformacional,
só que tem essa cautela. Não pode ser permanente. Você pode ter no futuro um
governo e um Banco Central que resolvam financiar de forma monetária o
déficit público. Uma política a la anos 1970, que deu errado.
Valor:
Essa é uma medida para fornecer liquidez ao mercado ou já é um instrumento não
convencional de política monetária para estimular a economia?
Mesquita:
Eu encaixaria mais como liquidez e normalização dos mercados do que como
algo que vai ser usado recorrentemente para estimular a economia. Não acho que
o Banco Central vá passar a usar a expansão quantitativa por um período longo
de tempo. É realmente para poder injetar liquidez nos mercados nos momentos de
alto estresse, definidos pelo Congresso como calamidade. Por que os países
maduros tiveram que fazer a expansão quantitativa prolongada? Porque eles
chegaram na taxa de juros zero. A gente não chegou à taxa de juros zero. Se um
dia - as coisas estão andando muito rapidamente - a gente chegar na taxa de
juros nominal zero, aí a gente vai ter que repensar os instrumentos da política
monetária. O arcabouço não muda. Você tinha a meta de inflação antes,
continua a ter nos países maduros, o que mudou foi o método para perseguir
essas metas.
Valor:
A mudança na forma como as empresas se financiam, com o recuo do BNDES e o
protagonismo do mercado de capitais, está afetando a forma como o Banco Central
atua no mercado para dar liquidez?
Mesquita:
Na gestão de liquidez do dia a dia, o Banco Central não consegue atuar
diretamente no mercado de crédito privado. Ele atua de forma muito indireta,
mudando as condições ambientais, para que isso influencie o mercado de crédito
privado. Com essa possibilidade de comprar títulos privados, o BC pode entrar
diretamente. Ele agiliza a gestão de crise e de liquidez neste mercado. O
que temos hoje? O Banco Central pode inundar os bancos de liquidez na
expectativa de que, com isso, a taxa de juros de mercado caia, o que vai acabar
favorecendo o financiamento das empresas que vão ao mercado de capitais. Vai
acabar favorecendo o preço dos títulos das empresas no mercado de
capitais. um caminho muito mais tortuoso e indireto do que o BC ir
lá e comprar o título.
Valor:
E como isso vai funcionar na prática?
Mesquita:
Esse é um ponto interessante. Como o Banco Central vai comprar, quando ele vai
comprar? Quanto tempo vai manter esse título na carteira? E se o BC comprar e o
preço do título cair? E se o preço subir? Ele vai ter um lucro? Se comprar e o
preço cair, vai ter um prejuízo? Isso tudo vai ter que ser regulado
depois. Na minha experiência, os órgãos de controle e o Congresso sempre ficam
olhando muito quando o Banco Central tem um resultado grande, seja positivo ou
negativo.
Valor:
E sobre a compra de dívida pública pelo Banco Central? Não seria a emissão
monetária para financiar o Tesouro?
Mesquita:
Fica mais próximo do mundo da expansão quantitativa. Para não configurar isso,
tem que ser compras por prazo curto, em períodos excepcionais, para não cair
nisso que você está falando. Na expansão quantitativa feita no exterior, os
bancos centrais compram títulos públicos ao longo da curva para fazer com que a
curva inteira fique próxima de zero, mais baixa o possível.
Valor:
O Banco Central não deveria estar baixando os juros de forma mais agressiva?
Mesquita:
A taxa de juros ajuda, mas não acho que nesse momento é o principal
instrumento. Faz muito mais sentido criar as condições que favorecem o
financiamento da folha de salários das pequenas e médias empresas que vão
perder receita com essas operações de distanciamento social. Faz muito mais
diferença do que um corte mais agressivo da taxa Selic agora. Também acho que,
como o Banco Central apontou, se você corta a Selic mais agressivamente num
momento de estresse, as condições financeiras podem nem ser relaxadas. E aí
você cortou e não atingiu acalmando, o Banco Central já sinalizou,
na nossa interpretação, que vai continuar cortando taxas de juros. Mas cortar a
Selic em 100 pontos-base não vai mudar muito o apetite das instituições financeiras
de financiarem a folha de salário das empresas nas condições atuais. Não é esse
o grande divisor de águas.
Valor:
E por que o Brasil é diferente nesse aspecto dos Estados Unidos, que cortou os
juros para perto de zero rapidamente?
Mesquita:
A gente também cortou. A taxa de juros, em termos reais, está em zero. De
repente, até negativo. Os Estados Unidos cortaram os juros, acreditando que
agindo assim consegue evitar uma queda maior do PIB. Acho que não vai
conseguir. Temos a expectativa de que o PIB dos Estados Unidos caia cerca de
10% no segundo trimestre. Não vai ser esse corte de juros que vai impedir isso.
Os Estados Unidos vêm também com uma política fiscal bastante agressiva.
Valor:
Qual é o seu cenário para a taxa de juro?
Mesquita:
A gente prevê uma queda adicional, para 3,25% ao ano. Olhando de hoje, não está
certo de que ela vai acontecer necessariamente na próxima reunião do Copom.
Pode ser, vai depender do mercado. Com um mercado mais positivo, pode ser na
próxima reunião, com o mercado mais estressado, talvez adie para a reunião
seguinte. Tem o risco de os juros caírem mais? Se o choque
desinflacionário se estender, aí é possível cair mais.
Valor:
O BC tem mencionado as condições financeiras como um fator que restringe os
cortes de juros. Em que medida essa preocupação está dentro do arcabouço do
regime de metas de inflação?
Mesquita:
A alteração das condições financeiras é parte do mecanismo de transmissão da
política monetária. Então, você toma decisões de política monetária para afetar
as condições financeiras, de uma forma que você acha que vai contribuir para
atingir as metas de inflação. Não podem ser - e acho que não são, no caso do BC
- um fim em si mesmo. O que acho que o BC está dizendo é que vê um cenário
que precisa de condições financeiras mais estimulativas para atingir a meta de
inflação. No momento em que a gente começar a ver, e isso não aconteceu, que as
condições financeiras por si só passam a ser o principal elemento no processo
decisório, poderíamos dizer que existe um conflito. A gente ainda não
chegou nisso. É como aquele debate muito comum sobre o papel da taxa de câmbio.
O BC está reagindo à taxa de câmbio? Não, ele leva em consideração a trajetória
do câmbio pelo impacto que tem na inflação.
Valor:
Em que medida o aperto nas condições financeiras reflete as nossas dificuldades
políticas para aprovar reformas?
Mesquita:
Isso é importante, afeta de duas formas. Gera prêmio de risco. O aumento da
incerteza fiscal gera um aumento de prêmio de risco. E, algo que o Banco
Central também mencionou nos seus documentos, pode ocasionar uma elevação
da taxa neutra, caso a gente acabe abandonando o projeto de médio prazo de
ajuste fiscal. Ninguém vai ser radical ao ponto de insistir que você persista
no ajuste fiscal depois de um choque, de uma calamidade como essa. A gente tem
que passar em 2020 por um período de expansão fiscal. Na verdade, a PEC do
teto de gastos já incluía uma cláusula de escape exatamente para esse tipo de
situação. A gente não imaginava nem esperava que essa cláusula viesse a ser
explorada tão rapidamente, mas está sendo. Não vejo problema nenhum em você ter
um aumento até grande do déficit primário neste ano, desde que seja de natureza
temporária. O que não deve fazer é perenizar aumentos de gastos para
reagir a um evento que é trágico para muitas famílias, sério, mas que tende a
ser temporário. Acho que quando você vê a abertura das taxas bem longas, de
certa forma reflete incertezas, não tanto sobre a magnitude da situação fiscal
em 2020. Acho que o mercado aceita uma expansão fiscal grande neste ano.
Acho que a incerteza maior é o quão persistente é a natureza dessa expansão.
Valor:
O seu cenário é de uma recuperação forte no ano que vem?
Mesquita:
É de crescimento perto de 5%, mas é o efeito base, porque cerca de 3% disso aí
é carrego. É só a normalização. Não é um crescimento que deve ser visto
como algo tendencial, simplesmente é fruto de uma normalização. O crescimento
mesmo é de 2%, de 2,1%, uma coisa assim. Mas tem um grande porém. A intensidade
da queda do PIB neste ano vai depender de quanto tempo vai demorar a
normalização. Se a gente tiver uma normalização a partir de julho,
no terceiro trimestre, aí o PIB vai ficar entre queda de 0,5% e queda de
1%. Nossa projeção é queda de 0,7%. Se a normalização ficar para o último
trimestre do ano, aí você já está falando em uma queda do PIB mais intensa
neste ano, de 3% ou 3,5%. Isso é, se a gente não tiver uma piora permanente das
condições financeiras, se o risco fiscal não se deteriorar de forma
persistente.