O Globo, n. 32549, 18/09/2022. Mundo, p. 26

Laboratório feminista

Alessandro Soler


Aquele dia de abril de 2018 tinha amanhecido com um ventinho gelado e cara de chuva. Além disso, era quinta-feira. A produtora Marta Herrero se lembra de ter pensado que tudo isso espantaria muita gente, mas foi só até ver a maré humana que, literalmente em minutos, paralisou o trânsito do Centro de Madri. Eram milhares de mulheres protestando contra a sentença de um caso de estupro coletivo que dominou os noticiários por meses e se tornou um símbolo da luta contra a violência machista na Espanha.

— Eu só disse ao meu chefe que faltaria ao trabalho para ir ao protesto. Nem pedi autorização, não era preciso — recordou.

A tal sentença não reconhecia a violação de uma menina de 18 anos por um grupo de cinco homens autointitulado “La Manada” como estupro, mas como “abuso”, com penas mais baixas. E um dos juízes escreveu no seu voto que parecia ver “excitação sexual” na vítima. Aqueles protestos de vários meses não só levaram o Tribunal Supremo a tipificar o crime como estupro e elevar as penas de 9 para 15 anos. Sobretudo, desencadearam uma sequência de projetos de lei focados nas mulheres que, por sua abrangência e velocidade, tornam a Espanha um laboratório feminista, sob o olhar atento do mundo.

Só nos últimos meses, o Ministério da Igualdade apresentou novas legislações que desfazem ambiguidades nos casos de estupros (a norma, já aprovada pelo Congresso, foi batizada de “Só sim é sim”); igualam as licenças maternidade e paternidade, antiga demanda feminina; eliminam barreiras para o acesso ao aborto legal; e garantem dias livres no trabalho a quem sofre com menstruações dolorosas.

— O que estamos fazendo pôr o Estado ao lado das mulheres — resumiu a ministra Irene Montero, titular da pasta e histórica integrante do movimento feminista. — No caso da lei do aborto, queremos devolver às mulheres de 16 a 18 anos e às mulheres com deficiência a possibilidade de decidir sobre seus próprios corpos, sem ter que pedir autorização a ninguém. Também desaparece o período de reflexão obrigatória de três dias antes do procedimento. As restrições nunca fizeram cair o número de abortos, só trouxeram mais sofrimento às que têm de apelar a eles.

Rua versus política

Uma pesquisa Ipsos realizada em 27 países e publicada mês passado mostrou que, com 70% de aceitação, a Espanha é uma das nações mais liberais em relação ao aborto — no Brasil, a taxa ficou em 48%, e só a população “mais urbana e educada” foi ouvida, ressalvou o instituto. Além disso, inúmeras enquetes na imprensa traduzem o respaldo popular às políticas menstruais (que incluem ainda a distribuição gratuita de absorventes) e à lei que torna homens e mulheres corresponsáveis pelos recém-nascidos, com o mesmo número de dias em casa cuidando deles.

Não tão unânime é o apoio à ministra Montero. Numa sociedade fortemente polarizada, o fato de ela militar no partido de esquerda Podemos, que dá sustentação ao governo do primeiro-ministro social-democrata Pedro Sánchez, a torna persona non grata entre conservadores radicais.

Em baixa nas pesquisas, Sánchez poderá ser substituído na eleição do ano que vem pelo líder da oposição de direita, crítico de alguns dos projetos feministas do atual gabinete. Por isso, há medo real de que esta onda progressista seja só uma miragem.

— O feminismo está em seu auge na Espanha. Mas a ultradireita também. Não sei o que o resultado das eleições do ano que vem trará. O avanço corre perigo — disse a cientista política Leticia García Gallardo, mencionando “mais uma ameaça, mas que enriquece o debate”: a divisão dentro dos próprios movimentos sociais.

Feministas versus LGBT+

É que outro dos projetos apresentados não foi bem recebido por líderes históricas da luta pelos direitos das mulheres. A chamada Lei Trans, apoiada pela militância LGBTQIA+, traz um amplo leque de medidas, entre elas a possibilidade de solicitação de mudança de gênero e nome na documentação, inclusive por menores de idade, sem prévia avaliação por médicos nem tratamentos hormonais.

Algumas mulheres veem nisso um enfraquecimento do conceito de sexo biológico em detrimento do de gênero, determinado pela própria pessoa. Consideram que, com isso, corre perigo sua própria demanda por igualdade de condições com os homens.

— A autodeterminação de gênero reduz o sexo de uma pessoa a uma questão de puro desejo [de identificar-se de uma forma ou de outra]. Portanto, o banaliza e priva de dignidade — criticou a socióloga Rosa Cobo Bedía, pesquisadora feminista e professora da Universidade da Corunha. — A lei trans foi apresentada sem discussão com o movimento feminista e vem sendo defendida com agressividade por uma parte do movimento LGBT. Dá o que pensar.

Abismo oceânico

À margem dessa discussão, brasileiras que vivem na Espanha descrevem um abismo entre os direitos que as mulheres vêm conquistando aqui e os que elas ainda lutam para alcançar no Brasil.

— Na primeira consulta de pré-natal do meu segundo bebê, aqui em Madri, a médica perguntou “você quer continuar com a gravidez?” de uma forma totalmente objetiva, sem julgamento. Aquilo me surpreendeu muito. Muito diferente do registro medieval em que o Brasil fala de aborto — comparou a jornalista carioca Juliana de Oliveira, há três anos no país.

A diretora de audiovisual paulistana Isabel Mercês, desde 2019 na Espanha, fez coro com ela:

— No Brasil, quando uma menininha foi estuprada há uns anos e tentou ter acesso ao aborto, legal para seu caso, a [então] ministra Damares [Alves] estimulou a turba a fazer plantão na porta do hospital para impedir os médicos de interromperem a gravidez. Era uma criança de 10 anos!

As duas, como as espanholas Marta e Leticia, disseram ver ainda um caminho a percorrer por mais avanços: desde a equiparação total de salários e o acesso aos mais altos cargos nas empresas a uma mudança na mentalidade coletiva sobre cuidados. Atualmente, muitos ainda dão como certo e lógico o protagonismo feminino no cuidado dos bebês, dos idosos, da família em geral.

— Mas não é algo só daqui, o mundo todo ainda deve isso às mulheres — afirmou Isabel.

Em qualquer caso, as quatro concordam: alguma coisa acontece na Espanha. Mesmo ameaçada por uma eventual eleição de um grupo ideológico mais hostil no ano que vem, a luta pela conquista real de direitos pelas mulheres parece instalada de vez no debate público. Como uma onda, que os protestos nas ruas e as marchas de 8 de março entre as maiores do mundo tornam no mínimo difícil de deter.

Da saúde menstrual à licença- paternidade

Nova lei contra a violência sexual: já aprovada, altera o Código Penal do país e torna estupro qualquer tipo interação sexual não consentida, independentemente de violência física por parte do agressor. O critério para a prática consensual passa a ser o “sim” expresso — daí o nome “Só sim é sim". Cria-se uma rede 24 horas para atender às vítimas em centros especializados.

  • Reforma da lei do aborto: ainda em tramitação, mantém o prazo atual de 14 semanas de gestação e a não necessidade de uma justificativa da mulher para a interrupção da gravidez. Derruba o atual período de três dias de “reflexão” entre a manifestação da vontade de abortar e o ato em si. Também regula os casos de “objeção de consciência” por médicos que não querem fazer o procedimento. Elimina a necessidade de autorização dos pais ou responsáveis de mulheres de 16 a 18 anos e de mulheres com deficiência que queiram abortar.

  • Saúde menstrual: outro ponto da nova lei do aborto trata da saúde menstrual. O conceito engloba licenças para pessoas que sofram com menstruações dolorosas incapacitantes. A norma prevê a distribuição de absorventes gratuitamente e um potente reforço em campanhas de educação sexual.

  • Licença-paternidade: em vigor desde janeiro, a lei equipara em 16 semanas, individuais e intransferíveis, as licenças para pais e mães — seis delas gozadas pelos dois conjuntamente, logo após o nascimento. Em 2023, o prazo começará a crescer até alcançar os seis meses em 2026. Uma ajuda de 100 euros mensais por bebê foi criada para famílias de baixa renda.

  • Lei trans: empodera o critério de autoclassificação. Para a alteração do gênero e do nome em documentos, bastará a vontade da pessoa, sem a necessidade de avaliação médica ou de tratamentos hormonais, a partir dos 16 anos . O Estado passa a reconhecer as pessoas não binárias e assegura todo o tratamento físico de transição — da terapia hormonal às próteses e cirurgias — às pessoas trans que quiserem fazê-lo.