Título: Expressões (e exceções) da barbárie
Autor: Ricardo Antunes
Fonte: Jornal do Brasil, 24/11/2005, Opiniao, p. A11

Os recentes exemplos de tortura, sob a manta de trote militar, que a imprensa intensamente nos mostrou nesses dias, são expressões ''abrandadas'' daquilo que foi prática cotidiana em várias unidades militares durante a fase mais dura do terror da ditadura. As lembranças tenebrosas dos porões do 2º Exército, em São Paulo, são por demais suficientes. Muitos foram torturados e alguns barbaramente assassinados.

O não enfrentamento - e efetivo julgamento - dos grandes torturadores psicopatas que mancharam completamente a história recente brasileira, acabou por legitimar os ''pequenos'' psicopatas torturadores de hoje, que se utilizaram do instrumental abjeto e víl da tortura para ''saudar'' o ingresso de novos membros nas sombrias dependências da academia militar. Com choques elétricos, ferro quente e afogamentos.

Se nosso país, ao menos no que concerne às formalidades civis, liberalizou-se (pois falar em democratizaçao real parece soar algo por demais exagerado), tal liberalidade passa ao largo de muitas instituições. A barbárie da tortura, por exemplo, foi ''esquecida'' pela anistia recíproca aceita pela ditadura militar, que tampou com algo mal cheiroso o calabouço da tortura.

Desde o fim dos anos de chumbo que os distintos governos civis oscilam entre a tibieza e a subserviência, em relação às atrocidades realizadas nos subterrâneos da ditadura. A chamada ''Nova República'', resultado de forte contingência histórica aberta com a doença e morte de Tancredo Neves que levou Sarney ao poder, foi durante toda sua vigência, em grande medida, refém dos militares nas questões consideradas essenciais. O massacre de Volta Redonda, em 1988, quando três operários foram brutalmente assassinados durante a greve na Companhia Siderúrgica Nacional, maculou cabalmente seu governo tutelado.

Collor foi expressão de um semi-bonapartismo civil e aventureiro respaldado pelas oligarquias e junto com seu grupo predador sonhava com as fortunas privadas que floresciam através dos saque da res publica. Seria um contra-senso imaginá-lo exigindo algo dos militares.

Fernado Henrique Cardoso soube bem como chegar ao poder sem ferir nenhum dos interesses dominantes mas, ao contrário, mostrou-se desde logo como garantidor de seus interesses e preservador das instituições autocráticas que controlavam e comandavam o país. Vale lembrar que acabou por prorrogar o direito dos militares manterem longe da consulta pública parte das atrocidades cometidas durante a ditadura militar, mesmo tendo sido direta e injustamente punido por ela. O príncipe jamais pensou seriamente, em seu mandato, em restringir o poder das armas, naquilo que os militares consideram sagrado. E a tortura militar ficou bem guardada.

Lula, também neste quesito, foi o exemplo mais completo do embuste. Punido pela ditadura militar nas greves do ABC paulista, foi processado como consequência de sua pujante atuação na liderança dos metalúrgicos em 1980. Mas seu governo, na mansidão que lhe caracteriza, oscila entre a timidez e subserviência. Chega a ser pícaro vê-lo em festas e comemorações militares.

Mas precisamos lembrar que tivemos e temos também nossas belas exceções. Aqui, simbolicamente, cito duas das mais louváveis. A coragem assombrosa de nosso D. Paulo Evaristo, que com sua voz mansa dizia coisas duras que os militares não gostavam de ouvir, sendo a voz mais autêntica, dentre aquelas que podiam se expressar, dos sentimentos de liberdade e dignidade humanas contra a barbárie da tortura praticada pela ditadura, numa triste rima.

Outra lembrança imprescindível é a de Vladimir Herzog. Jornalista digno, combatia com as ''armas'' da informação livre e verdadeira, recusando até onde podia outra forma de barbárie presente na censura. Foi brutalmente assassinado pelas armas (sem aspas) dos calabouços e dos porões onde dominavam a tortura e a delinqüência protofascista. A morte de Herzog, trinta anos atrás, foi um marco fundamental da luta contra a ditadura e seus mecanismos de tortura. Que a história brasileira ainda haverá de apurar, para que possamos de fato extirpar todos os tipos de tortura, para sempre, da vida de nosso país.

Ricardo Antunes escreve às quintas-feiras, a cada 15 dias.