Título: A rebelião dos banlieus
Autor: Maurício Santoro
Fonte: Jornal do Brasil, 24/11/2005, Opiniao, p. A11

A recente rebelião dos banlieus franceses trouxe ao centro da política as demandas de um dos grupos sociais mais marginalizados daquele país: a juventude que descende de imigrantes e enfrenta o racismo, a xenofobia e a discriminação religiosa. Os protestos violentos expressaram o ódio aos representantes do Estado, particularmente a polícia, mas são também um grito pelo reconhecimento de direitos de cidadania e de integração na França - e em outras sociedades da Europa, pois a tensão é semelhante nos demais países do continente.

A expressão banlieu é uma contração de ''lugar de banimento'' e designa a periferia das cidades francesas, nas quais se construíram conjuntos habitacionais para a população imigrante, que forneceu a mão-de-obra barata durante o período de rápida expansão industrial do pós-Segunda Guerra Mundial. A prosperidade ficou para trás. A juventude que descende dessas pessoas sofre com falta de oportunidades, serviços educacionais e de saúde e a promessa frustrada de ascensão social. Sua raiva questiona se ''liberdade, igualdade e fraternidade'' são direitos universais ou privilégios restritos aos brancos de ascendência européia.

A direita procura tratar dessa questão social como um caso de polícia envolvendo vândalos estrangeiros. A retórica anti-imigração tem força eleitoral, como comprovada pelas expressivas votações de políticos extremistas como Jean Marie Le Pen, segundo colocado nas últimas eleições presidenciais francesas. Seu posto é disputado pelo ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, que afirmou que os protestos eram obra da ''escória'' e propôs banir os imigrantes envolvidos na insurreição. Sarkozy tem no horizonte a disputa presidencial de 2006 e busca o apoio da assustada classe média francesa, que teme a juventude dos banlieus mas acha Le Pen radical demais.

Os protestos se espalharam por mais de 300 cidades francesas. Os alvos principais foram as instituições do Estado (polícia, escolas, correios) e automóveis, símbolo da sociedade de consumo da qual a juventude marginalizada está excluída. A França tem uma longa tradição de revoltas urbanas. A atual se assemelha às lutas de Maio de 68, por seu caráter de expressão do descontentamento profundo com a política tradicional, sem o objetivo de tomar o poder ou depor o governo. Mas em lugar de estudantes de classe média, das universidades, agora é a população mais pobre que ocupa as ruas, às vezes despertando o medo dos antigos rebeldes dos anos 60.

A Revolução de 1848 também começou de modo semelhante aos atuais protestos, como uma revolta em Paris, e se espalhou pela Europa na ''Primavera dos Povos''. Marcou a entrada na cena política de uma nova classe social, o operariado, e a ascensão do nacionalismo. Será que a insurreição dos banlieus terá um percurso parecido, provocando movimentos de contestação em outras capitais européias?

A onda de protestos já consolidou um novo ator, a juventude descendente de imigrantes. A questão é saber qual o futuro político desses rapazes e moças, se terão a capacidade de organizar uma agenda de reinvindicações e demandas por mudança, ou se virarão massa de recrutamento para grupos extremistas, inclusive organizações terroristas. Chama a atenção a ausência de canais institucionais que possam servir para negociar com as autoridades. Nenhum partido, movimento ou grupo representa a juventude dos banlieus junto à elite francesa. Ela está só em seu abandono e ódio.

O mais famoso manifesto da revolução de 1848 anunciou que um espectro rondava a Europa. Hoje, o fantasma é a exclusão social. Cabe aproveitar a oportunidade para enfrentar o racismo e as outras formas de discriminação, construindo sociedades à altura dos ideais democráticos e igualitários da melhor tradição européia. Ou encarar o risco do extremismo político à base de guetos, toques de recolher, violência policial e ódio generalizado.

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).