O Globo, n. 32550, 19/09/2022. Opinião, p. 3

Estado Democrático Digital de Direito

Luiz Fux


O Estado Democrático de Direito, além de concretizar a velha fórmula de Abraham Lincoln — o governo do povo, pelo povo e para o povo —, também é vocacionado para a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, centro de gravidade do universo jurídico. Sempre imbuído dessa premissa, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre a constitucionalidade do decreto federal nº 10.046, de 9 de outubro de 2019, que dispõe “sobre a governança no compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal e institui o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados”. Especificamente, o poder público pretendia manter as tratativas ocorridas entre o “Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin)”, a fim de compartilhar dados pessoais de mais de 76 milhões de cidadãos brasileiros que “possuem a Carteira Nacional de Habilitação (CNH)” — dados esses originalmente coletados e armazenados pelo Departamento Nacional de Trânsito (Denatran).

A vagueza do ato saltava por cima de cláusulas pétreas da Constituição, tais como (i) o direito à proteção de dados pessoais e da autodeterminação informativa (art. 5º, LXXIX, CF/88); (ii) a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, do sigilo de dados e de comunicações (art. 5º, incisos X e XII, CF/88); e (iii) o princípio democrático e da proteção à dignidade da pessoa humana (art. 1º, caput e inciso III, CF/88).

Hodiernamente, é cediço que o paradigma do Estado Democrático de Direito se expressa essencialmente pela limitação do poder estatal — rechaçando o arbítrio do Estado. O advento da era digital e da sociedade da informação, que expandiu os horizontes da navegação dos mares à internet, aumentou sobremodo o poder informacional do Estado, oriundo do conhecimento gerado pela coleta e pelo tratamento de dados sobre a vida dos cidadãos. No Estado Democrático Digital, esse poder não deve ser usado para subjugar indivíduos por meio da vigilância ininterrupta e sorrateira de suas atividades, sob pena de deslegitimar a própria aptidão informacional do poder público.

Exemplos e aprendizados de experiências passadas nos obrigam a indagar: 1) quem acessa os dados dos cidadãos?; 2) para que finalidades os dados são acessados?; 3) essas finalidades são compatíveis com a finalidade para a qual os dados foram coletados pelo Estado?; 4) tais finalidades condizem com as competências legais do órgão que utiliza essas informações?; 5) que salvaguardas são implementadas pelo órgão para garantir o uso legal de tais dados?

No caso concreto analisado pela Corte, o decreto não respondia adequadamente a nenhuma dessas indagações.

O Supremo Tribunal Federal, com os faróis voltados simultaneamente para o passado e para o futuro, pensou alto: outra vez não! Nesse sentido, declarou a inconstitucionalidade do decreto, certo de sua missão de construir as bases jurídicas do novel Estado Democrático Digital. Essa nova feição da democracia digital, mercê de acompanhar a invocação de Vivante “Altro Tempo, Altro Diritto”, repudia inovações que viabilizam a pervasividade das novas tecnologias e, consequentemente, das possibilidades de práticas abusivas que afetam os direitos fundamentais e o sigilo dos dados da intimidade humana. Eis, portanto, a máxima do Estado Democrático Digital: a tecnologia deve ser sempre empreendida e incentivada, invariavelmente, para a proteção das liberdades dos cidadãos.