Valor Econômico, v. 20, n. 4971, 31/03/2020. Política, p. A8

PECs tentam delimitar poderes na crise

 Maria Cristina Fernandes 


As minutas das duas propostas de emenda constitucional que podem ser votadas até amanhã mostram a corda esticada na disputa entre Palácio do Planalto, Congresso e Banco Central pelo poder tomar de decisões e gerir recursos na crise do coronavírus.

Na primeira delas, que institui o Comitê de Gestão da Crise, o Congresso recuou da tentativa de colocar o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, no seu comando, e definir as pastas que o integrariam (Economia, Infraestrutura, Agricultura, Justiça, Advocacia-Geral da União e Controladoria-Geral da União). A este comitê caberia gerir o orçamento da crise sem as amarras hoje existentes no Orçamento-Geral da União.

O alerta de um ministro do Supremo Tribunal Federal de que o texto violaria a separação dos Poderes e a resistência do presidente Jair Bolsonaro em conceder mais poderes a Mandetta levaram ao recuo. Depois da reunião ministerial do fim de semana, da qual vazaram informações indicando um novo embate entre o ministro e o presidente, o Planalto mudou o formato da entrevista diária de Mandetta, que passou a ser coordenada pelo ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, e a incluir outros ministros.

Nesta entrevista, o ministro voltou a colidir com o presidente da República, ao defender que a conduta da quarentena siga as recomendações científicas e ao pedir desculpas à imprensa, cuja cobertura acusara de “sordidez”.

Na nova minuta da proposta de emenda constitucional, o comitê é entregue ao comando do presidente que, no texto anterior, estava excluído de sua composição. Na nova proposta, também é conferido ao presidente Jair Bolsonaro o poder de escolher os ministros que comporiam o comitê.

Os integrantes a serem escolhidos pelo presidente da República serão os únicos com direito a voto, mas outros artigos manterão a capacidade de Legislativo e Judiciário interferirem na condução do comitê. A julgar pelo formato da primeira entrevista coletiva, as Pastas integradas por ministros militares, como a Casa Civil e a Defesa, podem vir a participar do comitê.

O Congresso terá o poder de sustar qualquer decisão do comitê gestor, em caso de “ofensa ao interesse público”. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, no limite, o Supremo Tribunal Federal (STF), terão a competência de dirimir os conflitos decorrentes da atuação do comitê e o Tribunal de Contas da União (TCU) fiscalizará seus atos.

Governadores estão contemplados na formação do comitê com a presença de dois secretários estaduais e dois municipais de saúde e outros quatro, de fazenda. Senado, Câmara, Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público e Tribunal de Contas terão um representante. Nenhum desses integrantes, porém, poderá votar nas decisões do comitê. O crivo das instituições lá representadas se dará a posteriori.

A preocupação do presidente Jair Bolsonaro com a votação dessa PEC pôde ser medida pelo convite feito ao ministro do Supremo Gilmar Mendes para uma audiência no Palácio do Alvorada na tarde de sábado. O encontro foi uma sugestão do ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira.

Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, Gilmar Mendes, na condição de advogado-geral da União, participou da formatação do comitê de gestão da crise do apagão de energia, presidido pelo então ministro-chefe da Casa Civil, Pedro Parente.

Desde então, Gilmar tem atuado como conselheiro jurídico de vários presidentes, mesmo depois da ida para a Corte. Em outros governos, porém, o ministro da Justiça ocupa um papel central nesse aconselhamento, o que não tem acontecido com o atual titular da Pasta, Sergio Moro.

A resistência do Executivo a esta proposta de emenda constitucional pôde ser medida pelo pedido, atendido pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, no sentido de flexibilizar as regras fiscais hoje em vigor. Com isso, o governo busca esvaziar a necessidade de mediação do Congresso.

Paralelamente à redação desta PEC, os parlamentares também buscam interferir na proposta que define a atuação do Banco Central na crise. Na avaliação da cúpula da Câmara e do Senado, a minuta, tal como foi redigida, dá ao BC uma independência não prevista pela Constituição.

A PEC em questão facilitaria a aquisição, diretamente pelo Banco Central, de debêntures emitidas pelas empresas, sem a intermediação dos bancos. O temor, no Congresso, é que, por pressão do sistema financeiro, o BC também abra brechas no mercado de derivativos.

Depois de ouvir economistas que já ocuparam cargos de primeiro escalão na equipe econômica de outros governos, os parlamentares concluíram que esta PEC possibilitaria ao BC avançar em atribuições tanto do Tesouro, na definição do montante da dívida pública, quanto do Congresso, que autoriza sua emissão.