O Globo, n. 32551, 20/09/2022. Política, p. 11

Conservadorismo em adaptação

Bernardo Mello
Jéssica Marques


Um dia depois dos atos de 7 de Setembro mobilizados pelo presidente Jair Bolsonaro, os fiéis da catedral da Igreja Universal do Reino de Deus de Del Castilho, a maior da denominação no Rio, pararam para ouvir o bispo Jadson Santos elogiar as manifestações. Ao fim do culto, receberam a “Folha Universal” e puderam ler textos que alertavam para a eleição de partidos de esquerda na América Latina — nada diferente de outras edições recentes do periódico que já chamaram o ex-presidente Lula de “mentiroso” e “ex-presidiário”.

Se na política a Universal ainda remete a 1994, quando o seu jornal publicou manchetes como “PT defende aborto e casamento de homossexuais” e “Lula apela ao candomblé”, mudanças internas estão em curso nos últimos anos de olho na modernização do discurso para atrair novos fiéis. A linguagem renovada é guiada por Renato Cardoso, genro do bispo e fundador da Universal, Edir Macedo, e apontado como seu sucessor no futuro.

Além de conduzir cultos em formato “terapia de casal” ao lado da mulher, Cristiane, filha de Macedo, Cardoso encabeça pregações nas redes sociais em tom de autoajuda ou “coaching”, entrando em temas como educação financeira e realização pessoal. Trata-se de uma maneira diferente de apresentar a igreja para a sociedade. Expoente da terceira onda do movimento pentecostal, o neo pentecostalismo, a Universal tem como um dos pilares a “teologia da prosperidade”, que conecta riqueza material a bênçãos divinas — associada, quando despontou, a métodos “agressivos” de arrecadação do dízimo.

As mudanças na Universal coincidem com a redução no ritmo de abertura de templos da denominação no país nos últimos anos. Com 7,5 mil registros de igrejas em vigor na Receita Federal atualmente, a Universal chegou a contabilizar um salto de 300% de CNPJs entre os anos 1980 e 1990, segundo dados da plataforma Brasil.io compilados pelo GLOBO. No século XXI, a tendência se inverteu: nesta década, a queda foi de 40% em relação ao número de inaugurações dos dez anos anteriores.

Ser disruptiva na forma de lidar com os fiéis está na origem da Universal, criada por Macedo nos anos 1970. O bispo, um ex-funcionário da Loterj nascido em família de classe média católica da zona norte carioca, fundou um império presente em 120 países do mundo que mudou a forma como os evangélicos se veem e são vistos. No lugar dos códigos de conduta mais rígidos de igrejas, como a Assembleia de Deus, Macedo introduziu maior liberalidade de vestimenta e temas. O líder da Universal já disse ser a favor do aborto nas hipóteses legais e indicou abertura para discutir outros casos. Ainda que com discurso conservador, citando a “submissão” feminina ao homem, Macedo também abriu espaço para cultos com orientações sobre uso de preservativo e relações sexuais, outro tabu em religiões cristãs.

— Ele promove uma grande modernização em costumes rompendo com o estereótipo em vigor do crente. Em contraste com a Assembleia de Deus, que internalizava a ideia de sofrerem preconceito por serem evangélicos, a Universal adota uma postura de contra-ataque — afirma o cientista político Vinicius Valle.

Bem antes do genro Renato Cardoso, o próprio Macedo já havia feito movimentos para reduzir a antipatia histórica com a Universal, seja minimizando os atritos com outras religiões ou até mesmo dentro do segmento evangélico. Em 1995, por exemplo, repercutiu negativamente o episódio em que o bispo Sérgio Von Helde chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Mais de vinte anos depois, logo após o bispo licenciado e ex-senador Marcelo Crivella (Republicanos) ser eleito prefeito do Rio — no maior cargo majoritário alcançado pela igreja até hoje —, foram abertas excelentes relações de diálogo coma Arquidiocese do Rio, sem qualquer notícia de desavença em quatro anos de administração.

Os embates com os evangélicos levaram a duas dissidências marcantes ao longo das décadas. Em 1980, o missionário R.R. Soares, seu cunhado, deixou a Universal após perder o comando para Macedo, e fundou a Igreja Internacional da Graça. Em 1998, foi a vez de Valdemiro Santiago — ele lançou a Igreja Mundial do Poder de Deus, que chegou a avançar em horários da Universal em canais de TV. Além disso, Macedo protagonizou disputas por compra de espaço em rádios e televisão, gerando reclamações de pastores como Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, que já o acusou, em 2010, de “concorrência desleal”, já que o fundador da Universal é dono de uma emissora de TV aberta, a Record. Com o tempo, Macedo mitigou as desavenças com outras lideranças evangélicas e conteve a saída de insatisfeitos da igreja:

— A Universal, em vez de expulsar e gerar dissidências, passou a acomodar internamente — afirma o jornalista Gilberto Nascimento, autor de “O Reino: a história de Edir Macedo e uma radiografia da Igreja Universal”.

Ampliação do eleitorado

O estilo incisivo de Macedo na expansão da igreja se repetiu nos avanços na política. A estratégia de espalhar representantes em vários partidos deu lugar, em 2005, à ideia de ter a própria legenda —o PRB, que depois se tornaria o Republicanos. Neste ano, o partido tem como maior aposta a candidatura ao governo de São Paulo do ex-ministro Tarcísio Freitas, que jamais teve trajetória vinculada à Universal.

— A estratégia de crescimento da igreja no início envolvia lançar seus próprios candidatos. Dois irmãos do bispo Macedo (Eraldo e Celso Macedo) concorrem ao Legislativo no Rio nos anos 1980. Nos últimos anos, o Republicanos é a sigla que lança mais bispos e pastores, mas não só da Universal. O partido busca fincar o pé no seu eleitorado, mas também em ampliar — afirma Bruno Carazza, autor de “Dinheiro, eleições e poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.

Apoiador de Fernando Collor, em 1989, e de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, Macedo liberou, em 2002, o principal articulador político da igreja, o bispo Carlos Rodrigues (PL- RJ), para ampliar a adesão a Lula dentro da Universal no segundo turno. A aliança como PT durou até o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, quando a igreja orientou os seus parlamentares a votarem a favor da queda. Em 2018, Macedo optou por Bolsonaro na última semana de campanha. A relação com o presidente, contudo, teve turbulências ao longo do mandato. A principal delas causada pela cri sede Angola, em 2020, quando a igreja considerou que houve letargiado Itamaraty diante da expulsão de pastores do país acusados de lavagem de dinheiro. A dúvida, agora, é qual será a postura do partido da igreja caso Lula vença a eleição.

— Nos Estados Unidos, o governo (Ronald) Reagan marcou a transformação dos evangélicos numa espécie de “maioria moral”, tornando-se base da direita. No Brasil, a dúvida é o que vai prevalecer: o pragmatismo ou a aliança bolsonarista — avalia o antropólogo Flávio Conrado, sem saber dizer se a Universal poderia compor com Lula, como já fez no passado, ou se consolida seu papel de líder de uma relevante direita evangélica brasileira.