O Globo, n. 32551, 20/09/2022. Saúde, p. 21

Vírus a espreita

Bernardo Yoneshigue


Depois do primeiro caso de poliomielite registrado nos Estados Unidos em quase uma década, e de amostras do vírus serem detectadas em águas de esgoto de outros lugares do mundo, como no Reino Unido, o alerta em relação ao retorno da pólio também chega ao Brasil. O temor do ressurgimento da doença é consequência direta das quedas sucessivas na cobertura vacinal contra o poliovírus, como vem acontecendo no país. Segundo um levantamento do estudo VAX*SIM, da Fiocruz, que analisa a imunização dos menores de 5 anos, apenas duas a cada cinco crianças brasileiras estão protegidas neste ano contra a paralisia infantil.

Os dados da Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite, que foi prorrogada até 30 de setembro devido à baixa adesão, mostram que até a última sexta-feira apenas 44% das crianças entre 1 e 4 anos receberam o reforço da vacina. Isso significa que cerca de 6,4 das 11,5 milhões de crianças elegíveis estão desprotegidas a duas semanas do fim da campanha, destacam os pesquisadores.

A doutora em saúde coletiva Patrícia Boccolini, coordenadora do Observa Infância —projeto da Fiocruz e do Centro Universitário Arthur de Sá Earp Neto (Unifase) responsável pelo VAX*SIM —, alerta os pais sobre o risco real que o país enfrenta hoje de retorno da paralisia infantil, e a gravidade do diagnóstico para as crianças.

— A doença é incapacitante, pode trazer sequelas para as crianças para o resto da vida. Então a possibilidade da volta desse vírus, que é real, traz um impacto gigante para a sociedade. Os especialistas estão muito preocupados porque as pessoas esqueceram como essa realidade era. Seria o retorno de uma doença devastadora, principalmente para a população infantil, um retrocesso imenso. Os pais precisam proteger seus filhos, a vacina está aí, disponível nos postos de saúde —orienta Boccolini.

O poliovírus, causador da poliomielite, é considerado erradicado no Brasil desde 1994. Porém, em 2020, o relatório da Comissão Regional para a Certificação (RCC) da Erradicação da Poliomielite nas Américas (Opas/OMS) expressou preocupação com a possibilidade de reintrodução do patógeno no país e o colocou na lista de alto risco para a doença, ao lado de Bolívia, Equador, Guatemala, Haiti, Paraguai, Suriname e Venezuela.

— Enquanto houver uma criança infectada em qualquer lugar, crianças de todos os países correm o risco de contrair a poliomielite. Por isso, a imunização com alta cobertura deve ser mantida e ampliada nos países até que a pólio seja completamente eliminada do planeta — explica o infectologista Leonardo Weissmann, do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo.

Quadros graves

O especialista, que é também consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), reforça que a contaminação pelo poliovírus é extremamente perigosa pelo quadro grave que o microrganismo pode causar e por ainda não haver um tratamento para ele. Com isso, embora não seja a maioria dos casos, ele lembra que a infecção pode atingir o sistema nervoso central e provocar a famosa paralisia.

— A pólio não tem tratamento específico e não tem cura. Em alguns casos, o vírus atinge o sistema nervoso, causando paralisia geralmente das pernas até o final da vida e, mais raramente, pode ocorrer paralisia dos músculos respiratórios, o que pode levar à morte — ressalta o infectologista.

O esquema de imunização contra a doença no Brasil é composto por cinco doses: as três primeiras com a vacina injetável de vírus inativada aos 2, 4 e 6 meses de idade. Depois, entre os 15 e os 18 meses de idade (1 ano), é feito o primeiro reforço com a vacina de vírus atenuado, a famosa gotinha. Aos 4 anos de idade, é indicado ainda um segundo reforço, também por via oral.

O levantamento do VAX*SIM ressalta que as sucessivas quedas na cobertura vacinal levaram o Brasil a ter, em 2021, a pior proteção em 25 anos. Apenas 75% dos bebês completaram o esquema primário com as três doses, e somente 60% das crianças receberam o primeiro reforço. Pelo novo levantamento dos pesquisadores, dois a cada três municípios brasileiros não atingiram a meta de vacinar 95% do público-alvo.

— Existe uma heterogeneidade muito grande entre os municípios. Temos cidades de médio porte cuja cobertura não chegou nema 10%. Nos municípios que tendem ate ruma cobertura da atenção primária maior, a cobertura vacinal também tende a ser. Isso acontece pois a vacinação acontece majoritariamente nos postos de saúde— explica Boccolini.

Abaixo da média

No ano passado, entre as capitais, somente Vitória (ES) alcançou o percentual de 95%. Além disso, 11 capitais registraram coberturas abaixo da média nacional, chegando a taxas de até 30%. Foram elas: Teresina (PI) e Natal (RN), com 74%; São Paulo (SP), com 73%; Porto Velho (RO), com 72%; Aracaju (SE), com 71%; Boa Vista (RR), com 63%; Belém (PA), com 57%; São Luís do Maranhão (MA), com 48%; João Pessoa (PB), com 43%; Macapá (AP), com 39%, e Salvador (BA), com apenas 30%.