O Globo, n. 32553, 22/09/2022. Economia, p. 20

"O teto de gastos evita medidas populistas"



O teto de gastos é o preceito da credibilidade fiscal, tanto no Brasil quanto na visão dos investidores estrangeiros, e não pode ser simplesmente eliminado no próximo governo. A defesa da medida, que limitou o aumento de gastos da União à inflação do ano anterior, foi feita pelo ex-presidente Michel Temer, durante o evento “E agora, Brasil?”.

Criada na gestão de Temer e do então ministro da Fazenda Henrique Meirelles, a âncora fiscal busca o reequilíbrio das contas públicas.

— Quando, nas minhas viagens, falo a empresários que querem investir no Brasil, eles me perguntam o que vai acontecer com o teto de gastos no Brasil, que trouxe credibilidade fiscal. Ele serve para evitar medidas populistas do governo. Não se pode dizer que simplesmente ele será eliminado — comentou Temer.

O candidato do PT à presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, já fez críticas públicas ao teto e disse que, se eleito, deverá mexer nessa trava dos gastos públicos. Já o presidente Jair Bolsonaro “estourou” o teto algumas vezes, como, por exemplo, para aumentar o valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600.

Temer citou números para mostrar a eficácia da medida em relação à redução da dívida pública. Ele lembrou que o país fechou 2016 com déficit público de R$ 155 bilhões e, em 2023, o Orçamento enviado pelo governo ao Congresso prevê déficit de R$ 63,7 bilhões.

— Diminuindo a dívida pública, se paga menos juros. Então, seja quem for o presidente, vai pensar duas vezes na revogação da medida — observou.

Combate à miséria

O ex-presidente, entretanto, disse que a redução das desigualdades sociais deve ser uma prioridade política no país e defendeu a ampliação dos gastos sociais para que esse objetivo seja alcançado.

Temer observou que na própria emenda constitucional nº 95/2016, que criou o teto de gastos, existe o dispositivo das chamadas “despesas extraordinárias”, que pode ser usado para liberar recursos ao combate à extrema pobreza.

— O governo vive de realidades sociais, e nós temos uma realidade social muito grave que é a questão da miséria. Portanto, temos que abrir um pouco a questão do Orçamento para esta realidade social. Se precisar avançar substancialmente em gastos públicos para tirar as pessoas da miséria e levá-las ao primeiro grau da classe média, acho que vale a pena — afirmou Temer.

O ex-presidente lembrou que, durante a pandemia, quando se discutia um “orçamento de guerra” para ajudar os mais necessitados, a partir do estado de calamidade, não se levou em conta que essa possibilidade já estava prevista no texto.

A emenda constitucional do teto diz que, em caso de comoção interna ou calamidade, pode-se usar créditos extraordinários fora do Orçamento. E os auxílios oferecidos se enquadrariam nisso.

Para que esses gastos extras não sejam entendidos como “descontrole fiscal”, é preciso muito diálogo e transparência sobre quanto será gasto, defendeu Temer:

— Acho que deve-se reunir o setor financeiro e o setor produtivo do país com muito diálogo. E também equacionar bem essa questão do crédito extraordinário para ver até onde se pode ir.

As reformas iniciadas em seu governo, como a do teto de gastos, afirmou Temer, são indispensáveis para que o próximo governo combata a desigualdade, em um primeiro momento com um plano assistencial, como o Auxílio Brasil. Mas esses benefícios devem ser temporários, na avaliação do ex-presidente:

— Esses benefícios visam fundamentalmente alimentar as pessoas, mas não podem ser eternos. É preciso ter planos e projetos que despertem o empreendedorismo para que, num dado momento, a pessoa ganhe voo próprio. Daqui a 20 anos, não podemos estar discutindo o Auxílio Brasil.

Para José Roberto Tadros, presidente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o ex-presidente Michel Temer fez um governo que buscou o equilíbrio entre a necessidade de estimular os investimentos para geração de emprego e renda e o compromisso fiscal:

— Nesta edição do “E agora, Brasil?”, Temer voltou a nos mostrar que não são ações excludentes e que é possível conciliar crescimento com orçamento sob controle.

Quanto à aproximação de Henrique Meirelles com Lula — ele declarou apoio ao petista —, Temer vê com bons olhos, pois pode significar a continuidade da austeridade fiscal, caso ele venha a ocupar algum cargo num eventual governo petista:

— Ele (Meirelles) vai poder explicar a importância do teto de gastos. Achei boa a aproximação (de Lula), porque Meirelles foi um dos patrocinadores do teto.

Inconstitucional

Sobre a análise que será feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do chamado orçamento secreto, que é o uso de bilhões por deputados e senadores em gastos com pouca transparência, Temer disse que considera o mecanismo inconstitucional. E lembrou que a Constituição é pautada pelo princípio da publicidade:

— Se estivesse no Supremo, diria que é inconstitucional. A Constituição é pautada pelo princípio da publicidade. Apenas documentos de segurança do Estado são secretos. No mais, tudo tem que ser publicizado.

Os desafios fiscais da União

Teto de gastos

Criado e aprovado em 2016, o teto de gastos foi pensado para ser a principal âncora fiscal do Brasil, depois do descontrole das contas públicas nos anos anteriores — que culminou em aumento da dívida, dos juros, da inflação e do desemprego. Era preciso, naquele momento, apontar um caminho de responsabilidade fiscal e de ajuste nas contas públicas. A regra é simples: os gastos de Executivo, Legislativo e Judiciário, separadamente, não podem crescer mais que a inflação do ano anterior. Ao mesmo tempo, esperava-se que o teto gerasse uma grande discussão sobre despesas obrigatórias. Essas despesas, formadas principalmente por aposentadorias, crescem acima da inflação. Com isso, o teto acaba comprimindo gastos não obrigatórios, como investimentos e manutenção da máquina pública. Para 2023, a revisão do teto é dada como certa. O principal desafio imposto é garantir a continuidade do Auxílio Brasil de R$ 600.

PEC dos Precatórios

A chamada PEC dos Precatórios foi a mais forte mudança no teto de gastos desde sua criação e colocou em xeque a própria continuidade da regra fiscal. A proposta de emenda à Constituição (PEC), aprovada no fim de 2021, abriu um espaço de cerca de R$ 100 bilhões no teto de gastos para ampliar dispêndios em 2022. Entre essas despesas, estava o Auxílio Brasil de R$ 400 (só em agosto ampliado em R$ 200). A PEC impôs um limite para o pagamento dos precatórios, que são as dívidas da União decorrentes de derrotas na Justiça.

Esse limite vale até 2026, criando uma bola de neve de gastos para os próximos anos. Em 2023, por exemplo, R$ 51,16 bilhões em precatórios não serão pagos, sendo rolados para os anos seguintes. Em 2022, já foram R$ 22 bilhões. Por outro lado, a regra permitiu o encontro de contas com precatórios, abrindo caminho para criar uma espécie de moeda de privatizações.

Lei de Responsabilidade Fiscal

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em vigor desde 2000, é um marco para as contas públicas brasileiras. Ela estabelece normas voltadas para a responsabilidade na gestão dos gastos, de forma a evitar um descontrole completo do cenário fiscal do país. Um princípio básico da lei é que qualquer gasto novo e permanente só pode ocorrer se for compensado por um aumento de receita ou corte de outra despesa de maneira equivalente. O mesmo vale para um corte de imposto para um setor específico: só é possível com a criação de uma nova receita permanente. Esse princípio, porém, tem sido desrespeitado e pode virar letra morta. O Auxílio Brasil de R$ 400, por exemplo, foi criado sem compensação, sendo ela dispensada numa emenda à Constituição. O governo também reduziu impostos federais sobre gasolina e diesel sem qualquer instrumento que evitasse um rombo nas contas.

Orçamento secreto

O Orçamento reserva um espaço para ser manejado por deputados e senadores, as chamadas emendas, que geralmente são usadas para destinar recursos para as bases eleitorais por meio de obras e serviços. Há emendas individuais e de bancada, que seguem critérios equânimes de distribuição e de transparência na divulgação. Nos últimos três anos, ganhou corpo outro tipo: a emenda de relator. Ela não segue qualquer critério objetivo de distribuição e, até pouco tempo, também não eram conhecidos os beneficiados com os recursos — por isso, ganhou o nome de orçamento secreto. Em 2022, foram R$ 16,5 bilhões destinados para as emendas de relator. Esse instrumento tem sido usado pelo governo Jair Bolsonaro como forma de barganha política. Em 2023, estão previstos R$ 19,4 bilhões para esse fim e, pela primeira vez, esses recursos vão avançar sobre os gastos mínimos da saúde.