O Globo, n. 32552, 21/09/2022. Política, p. 4

Sem sair do quintal

Daniel Gullino
André Duchiade
Alice Cravo


O presidente Bolsonaro fez discurso voltado ao público interno, com teor de campanha eleitoral, na abertura da Assembleia Geral da ONU. Diante de diplomatas, atacou a corrupção na gestão do ex-presidente Lula, distorceu fatos para promover seu governo e apregoou pauta de costumes. Em rara menção a tema internacional, defendeu cessar-fogo entre Rússia e Ucrânia.

Na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, o presidente Jair Bolsonaro fez um discurso em tom de campanha, voltado para o público interno. Ele atacou o ex-presidente Lula, fez menções à pauta de costumes e defendeu seu governo. O titular do Palácio do Planalto, contudo, adotou uma versão menos incendiária em relação à sua participação nos anos anteriores.

Sem citar o nome de Lula, seu principal adversário nas eleições, Bolsonaro ressaltou ontem escândalos de corrupção na Petrobras e afirmou que “o responsável por isso foi condenado em três instâncias”:

— No meu governo, extirpamos a corrupção sistêmica que existia no país. Somente entre o período de 2003 e 2015, onde a esquerda presidiu o Brasil, o endividamento da Petrobras por má gestão, loteamento político e desvios chegou à casa dos US$ 170 bilhões. O responsável por isso foi condenado em três instâncias por unanimidade.

A fala de Bolsonaro foi repleta de temas explorados por ele na campanha. Fez referência, por exemplo, aos eventos oficiais em comemoração ao Sete de Setembro, transformados em atos eleitorais:

— Milhões de brasileiros foram às ruas, convocados pelo seu presidente, trajando as cores da nossa bandeira. Foi a maior demonstração cívica da história do nosso país, um povo que acredita em Deus, pátria, família e liberdade.

O presidente também utilizou a tribuna da ONU para se defender de acusações que tem sofrido durante a campanha, como amá condução da pandemia de Covid-19 e declarações machistas.

A participação de Bolsonaro este ano na abertura da Assembleia Geral a ONU teve um tom menos belicoso. Em  2019, Bolsonaro se concentrou em atacar a imprensa, defender a ditadura militar e afirmar que o Brasil tinha soberania para fazer o que bem entendesse com suas florestas.

Em 2020, em mensagem por vídeo devido à pandemia, criticou medidas de distanciamento social, acusou a imprensa de “disseminar o pânico entre a população” e disse que outros países buscavam se apropriar dos recursos naturais brasileiros. Já no ano passado, defendeu o suposto “tratamento precoce” contra a Covid-19 e disse que o Brasil antes de sua gestão estava “à beira do socialismo”.

Desta vez, na maior parte do discurso, o presidente defendeu princípios e políticas que estão de acordo com orientações históricas da diplomacia brasileira, como o desenvolvimento sustentável, a solução mediada de conflitos e o fortalecimento do sistema multilateral.

Se estes elementos são bem-vistos, ao menos em teoria, na maioria dos países, eles não são compatíveis com o próprio governo de Bolsonaro. Ao exaltá-los, o presidente entrou em contradição com políticas de sua gestão, tanto em questões diplomáticas quanto internas.

Repercussão no exterior

A imprensa internacional repercutiu o discurso de Bolsonaro. “No palco mundial, o presidente brasileiro faz campanha para o cargo que ele pode perder”, destacou o jornal americano The New York Times. Para o jornal Clarín, da Argentina, o titular do Palácio do Planalto usou “a janela global da Assembleia para fazer campanha como já havia feito em Londres, durante o funeral da rainha Elizabeth II”. A Reuters mencionou a fala do presidente sobre a guerra da Ucrânia: “Bolsonaro pede ‘cessar-fogo imediato’ na Ucrânia”, destacou a agência de notícias. O veículo chamou a atenção ainda para as críticas feitas por Bolsonaro às sanções dirigidas à Rússia por conta do conflito.

Após o discurso na ONU, Bolsonaro participou, por videoconferência, de um seminário da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). Ele voltou a atacar o Supremo Tribunal Federal (STF) e chegou a dizer que uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra um de seus aliados foi mais severa do que o Ato Institucional nº 5 (AI-5), medida que determinou o fechamento do Congresso e a cassação de direitos individuais em 1968, durante a ditadura.

Bolsonaro citou como exemplo o deputado estadual Fernando Francischini (União-PR), cassado pelo TSE após divulgar informações falsas sobre urnas eletrônicas:

— Nem o AI-5 cassava gente como foi cassado esse deputado, o Francischini, lá do nosso estado do Paraná.