Valor Econômico, v. 20, n. 4971, 31/03/2020. Internacional, p. A13

Após a epidemia, mundo nunca mais será o mesmo

Simon Johnson

Vivemos agora no mundo pós-vírus. Para os EUA, a transição para esse mundo ocorreu subitamente, há menos de um mês. O mundo como o conhecemos antes da chegada da covid-19 se foi. E não voltará mais.

Quando você se conforma com essa realidade, tudo fica mais claro, incluindo como resistir na atual crise, como nos fortalecermos para os dias sombrios que ainda temos à frente e como retomar a economia de forma responsável. Com o entendimento certo, podemos reconstrui-la, com maior resiliência e mais justiça.

No começo de 2020 não acreditávamos que um episódio de mortalidade em massa aleatório pudesse acometer o planeta. Na maior parte da história humana, as doenças infecciosas foram uma ameaça constante, e a luta contra essa ameaça foi um elemento essencial da civilização humana. Na metade do século 19, a ciência começou a levar a melhor contra calamidades como o cólera.

No início do século 20, os europeus aprenderam a limitar os danos da malária e da febre amarela, ao menos para eles mesmos. A penicilina e a estreptomicina foram empregadas em larga escala a partir da década de 40. Logo vieram as vacinas contra varíola, sarampo, caxumba, rubéola e catapora.

Em dois séculos, da invenção da inoculação contra a varíola à sua erradicação, a ciência passou a dominar o ambiente. É claro que novas doenças surgiram - a começar pelos anos 80, por exemplo, quando a aids atingiu duramente algumas comunidades e países. Mas a visão predominante era que de essas emergências de saúde - embora exijam recursos e atenção - não eram fundamentais para a organização de nossas economias, nossas sociedades e nossas vidas.

O impacto global da covid-19 torna essa visão obsoleta. A mortalidade em massa aleatória está de volta, e essa realidade agora dominará tudo, por dois motivos.

Primeiro, este não é o primeiro coronavírus e sim um de diversas variantes letais a surgir desde a virada do milênio, incluindo a síndrome respiratória aguda severa (Sars) e a síndrome respiratória do Oriente Médio (mers). Não há motivo para pensar que será o último.

Em segundo lugar, esse coronavírus em particular deriva seu poder letal de seu perfil específico: ele é altamente infeccioso e pode ser transmitido até mesmo por pessoas assintomáticas. Muitas pessoas que contraírem a covid-19 terão apenas uma forma branda da doença, mas aparentemente ele matará muitas pessoas mais velhas e muitas com problemas de saúde pré-existentes, como hipertensão, diabetes e obesidade.

Mas por que um eventual coronavírus futuro necessariamente terá um perfil parecido? Outros coronavírus - daqueles que causam um resfriado comum até aqueles que causam a sars e a mers - não têm esse perfil. É totalmente plausível, dada a limitação do nosso conhecimento científico, que um futuro coronavírus possa ter um perfil diferente - por exemplo mostrando-se mais letal para os mais jovens do que para os mais velhos. Ou talvez ele mire nossas crianças.

Uma vez que tenhamos isso em mente, não é possível acreditar que retornaremos ao mundo pré-vírus. Tudo o que fazemos, dos nossos investimento s o modo como nos organizamos, será influenciado pela percepção de estarmos protegidos da covid-19 e de seus sucessores, ou mais vulneráveis.

Com esse entendimento, vários pontos ficam mais claros e até - num momento difícil e trágico - potencialmente tranquilizadores.

Os EUA e a Europa obviamente investiram pouco em preparação - incluindo em ciências relevantes e como aplicá-las - e a covid-19 deverá se mostrar devastadora no Ocidente. Mas a razão não é tanto a falta de uma tecnologia disponível. Afinal, a China conseguiu conter a pandemia em seu território - após um confinamento de dois meses - enquanto Taiwan e Cingapura não ficaram atrás, e a Coreia do Sul conseguiu uma saída incrível do que parecia ser um momento muito perigoso.

Não é a falta de tecnologia que deixou o Ocidente vulnerável, e sim a interação da covid-19 com nossa estrutura social e sistemas de saúde. Nos EUA o vírus explora uma sociedade desigual e um sistema de saúde fragmentado.

Temos armas mais do que suficientes para reagir, mas muitas delas estão apontadas para a direção errada - elaboradas para crises anteriores e muito menores, como furacões. Organizações poderosas, com recursos, são contidas por líderes que falham em coletar as informações necessárias e coordenar ou usar informações de um modo coerente para tomar decisões.

Essa fase não durará muito. Logo saberemos como combater a doença, e com força total. Ficaremos à frente da covid-19. Então, poderemos

começar a reconstruir um conjunto mais resistente de informações, de tomada de decisões e sistemas de saúde. Como parte disso, precisamos nos empenhar no desenvolvimento e emprego de todas as ideias científicas e organizacionais que elevem as chances de sobrevivência de nossos filhos e dos filhos de nossos vizinhos.

Com o tempo, prevaleceremos no mundo pós-vírus. Mas isso no longo prazo. A melhor maneira de encurtar esse período é reconhecer que um retorno ao “normal” não é uma opção.

Copyright: Project Syndicate, 2020. www.project-syndicate.org

Simon Johnson é professor da Escola de Administração Sloan, do MIT, e divide a presidência (com Retsef Levi) da covid-19 Policy Alliance, voltada para informações e recomendações para limitar perdas humanas com a pandemia