Valor Econômico, v. 20, n. 4971, 31/03/2020. Opinião, p. A14

O liquidacionismo de Guedes aprofunda a crise

José Oreiro
Luiz F. de Paula


Antes mesmo da crise mundial recente, a divulgação do crescimento do PIB real de 2019 decepcionou: um crescimento de 1,1% ao ano, contra a previsão do Focus de 2,5% no início de 2019. Este resultado evidenciou que estamos desde 2017 com uma economia estagnada (crescimento da renda per capita entre 0,3% a 0,4% ao ano), um fenômeno sem precedentes nas últimas décadas.

No Brasil o contágio da crise ganha contornos dramáticos ao se levar em conta a lenta recuperação econômica em curso e o fato de que esta, combinada com a reforma trabalhista de 2017, resultou em uma acentuada precarização do trabalho, com aumento de trabalhadores sem carteira de trabalho (mais de 40% da mão de obra). Como o governo está respondendo a esse “tsumani”?

Segundo declarações iniciais do presidente e seu ministro da Economia estaríamos perante uma “marolinha”. Em 9/3/2020, o ministro da Economia afirmou que “temos de manter absoluta serenidade e a melhor resposta à crise são as reformas. Vamos mandar a reforma administrativa, o pacto federativo já está lá, vamos mandar a reforma tributária. (...) Se fizermos as coisas certas, o Brasil reacelera. Se fizermos as coisas erradas, o Brasil piora”.

Além da necessidade e de avançar na agenda de reformas, o Ministério da Economia anunciou em 16/3/2020 uma injeção de recursos na economia de R$ 147 bilhões para garantir capital de giro para as empresas; postergação por 3 meses das contribuições do FGTS, além de transferir os valores não sacados do PIS/Pasep para o FGTS; antecipação do abono salarial e da segunda parcela do 13º salário dos aposentados pelo INSS; ampliação dos beneficiários do Bolsa Família; e um auxílio emergencial mensal no valor de R$ 200 para trabalhadores informais ou desempregados.

Em 22/3/2020, o governo editou a MP 927, que previu a suspensão contratual do trabalho por até 4 meses em comum acordo entre patrão e empregado, acabando por recuar frente a pressões. Em troca, o Banco Central anunciou uma linha de crédito para financiar folha de pagamento de pequenas e médias empresas até dois salários mínimos.

As medidas anunciadas se mostram claramente limitadas: na realidade se trata principalmente de antecipações de gastos que seriam realizados ao longo de todo o ano de 2020, mas que serão realizados no 1º semestre do ano.

Para os trabalhadores “uberizados”, a partir de iniciativa da Câmara dos Deputados, foi aprovado um auxilio emergencial de R$ 600,00 por 3 meses. Essa medida é necessária mas pode ser insuficiente para prover um impulso fiscal necessário para atenuar a crise econômica, que irá sofrer um duplo choque de oferta e de demanda.

Aqui duas questões se colocam.

Em primeiro lugar, Guedes e sua equipe reiteram a necessidade de uma nova rodada de reformas liberalizantes para enfrentar a crise, mas não enfatizam suficientemente políticas de estimulo à demanda. A agenda econômica do governo é uma espécie de reedição do liquidacionismo de

Hoover-Mellon (Secretário do Tesouro americano que pediu no início da década de 30 que o presidente Hoover se abstivesse de intervir na economia, pois acreditava que crises expurgavam a economia), no sentido de que as medidas de estímulo à demanda agregada são vistas como contraproducentes, além da visão de que a crise brasileira é essencialmente um problema moral, resultado da “gastança” dos governos anteriores.

Em segundo lugar, há um problema de governança na política econômica, com adoção de políticas pontuais ad hoc a reboque das pressões e acontecimentos. Não há uma visão estratégica ampla de como enfrentar a crise, e tampouco uma visão de mais longo prazo de como dar sustentação ao crescimento, superado o risco da pandemia.

Nossa avaliação é que a agenda do governo será pouco efetiva e poderá contribuir timidamente para atenuar a crise em curso, seja porque algumas das reformas propostas, como a PEC Emergencial, irão produzir uma contração da massa salarial dos servidores públicos, levando a ampla queda dos gastos de consumo; seja porque numa situação de profunda paralisia da atividade econômica, a única saída para enfrentar a crise é através de uma política fiscal contracíclica ativa face a queda na demanda privada.

Que medidas devem ser tomadas para enfrentar a crise?

Sem querer esgotar as medidas anticíclicas, sugerimos o seguinte:

Seria ainda bem-vinda a adoção de uma política com recursos do governo que garanta transitoriamente o pagamento de salários de quem ganha até três mínimos, atingindo cerca de 30 milhões de trabalhadores, tal como vendo sendo adotada em outros países, como Alemanha e Reino Unido. A vantagem desta medida em relação aos empréstimos subsidiados pelo Tesouro é que os empréstimos feitos pelas empresas terão que ser pagos daqui a 6 meses, o que poderá retardar a retomada do crescimento econômico e eventualmente aumentar à frente o desemprego.

A longo prazo, para sustentar a retomada do crescimento, a implementação de uma política de investimentos públicos em infraestrutura, inicialmente como o governo desengavetando projetos paralisados.

Dado o caráter emergencial da crise, torna-se necessária a alteração das regras fiscais vigentes, ficando ao menos momentaneamente deixadas de lado, com revisão da meta do resultado primário, extinção da regra de ouro e suspensão do Teto de Gastos por um prazo de dois anos, criando espaço legal para uma política de expansão dos gastos públicos.

Momentos de crise profunda vale a máxima de que “todos somos keynesianos”.

A inação e demora na resposta à crise cobrará um preço alto ao país.

José Luís Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB.

Luiz Fernando de Paula é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do GEEP/IESP/UERJ.