Valor Econômico, v. 20, n. 4972, 01/04/2020. Brasil, p. A2

Para chanceler, OMS não deve ser vista como ‘entidade sacrossanta’

Entrevista: Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores


O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, criticou, em entrevista ao Valor, o que vê como “demonização de quem não defende o confinamento integral” para combater o avanço do coronavírus. Para ele, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não deve ser encarada como uma “instituição sacrossanta, como se tivéssemos que rezar por uma cartilha”.

Leia os principais trechos da entrevista - a íntegra está no site do Valor - concedida, por telefone, na segunda-feira à noite:

Valor: Como está funcionando a operação do Itamaraty para repatriar os brasileiros no exterior?

Ernesto Araújo: A repatriação dos brasileiros é prioridade absoluta nossa, claro que muitas vezes trabalhando junto com a FAB ou com o Ministério do Turismo e a Embratur. Já conseguimos trazer de volta 8,6 mil brasileiros. Numericamente, é algo significativo, a gente celebra cada voo que consegue. Trouxemos agora 149 do Equador. Enquanto houver uma pessoa, estaremos preocupados.

Valor: Quantos ainda precisam ser resgatados?

Araújo: Estamos trabalhando com a necessidade de repatriar ainda mais 7 mil brasileiros. Eles estão em 50 a 60 países. No curtíssimo prazo, estamos avançados com o México e com a África do Sul. São cerca de 50 pessoas no México e estamos calculando quase 500 na África do Sul

Portugal talvez seja o país com maior número de cidadãos brasileiros com dificuldade para voltar. São uns 1,7 mil. Com voos comerciais, calculamos que quase todos possam voltar até o dia 3. Para os que não tivermos conseguido trazer, veremos os voos charter. Conseguimos um orçamento de R$ 50 milhões.

Valor: O sr. participou, na segunda-feira, de reunião virtual com ministros de Comércio do G-20. Quais são as maiores preocupações?

Araújo: Existe uma questão mais imediata, que é não impor barreiras sobre [a exportação de] produtos relacionados ao enfrentamento do coronavírus, mas há algo mais sistêmico e amplo: evitar uma nova onda de protecionismo. Os países estão se fechando, fechando fronteiras, há um receio de políticas protecionistas para o comércio como um todo. Isso só agravaria a situação. Nesse caso, é uma atuação semelhante à da crise de 2008 pelo G-20. Percebo todos muito comprometidos com isso.

Valor: O presidente Jair Bolsonaro tem contrariado a OMS. Não é um desprezo por suas orientações?

Araújo: Eu não quero entrar no detalhe das medidas sanitárias, que não me competem diretamente. A OMS tem evidentemente um papel muito importante de coordenação, de juntar informações, de recomendar. A organização é mundial no sentido de congregar todos os países, mas não é um foro supranacional. Ela tem um papel em países com estrutura de saúde mais frágil, sem condições de formular políticas públicas diante de uma pandemia. Mas é diferente em países que têm estrutura, indústria, SUS, Ministério da Saúde forte, Anvisa. As pessoas querem usar a OMS como se fosse uma instituição sacrossanta, como se tivéssemos que rezar por uma cartilha.

Valor: Mas ela tem um quadro de técnicos, de cientistas. Não devemos ouvir o que eles dizem como verdades irrefutáveis neste momento?

Araújo: Eu vejo um apelo a certos chavões: “ah, isso é ciência”... Há muitos infectologistas dizendo uma coisa. E há muitos dizendo outra coisa, desaconselhando a quarentena total. Todos eles têm fundamentos e estão imbuídos de boa-fé, mas começa a haver uma demonização de quem não defende o confinamento integral. De repente, vira um dogma. As coisas não podem ser assim. Ciência é justamente o contrário do dogma. A realidade é cambiante, complexa, cada dia surgem dados diferentes.

Valor: Em que medida essas observações têm a ver com suas já conhecidas críticas ao globalismo?

Araújo: Têm a ver com uma tendência, nas últimas décadas, de deslocamento do que é a função dos organismos internacionais como um todo. Têm a ver com um desprestígio dos governos nacionais. Os organismos internacionais são um espaço de reunião e coordenação dos países-membros. Os secretariados dos organismos devem facilitar isso, reunir informações, compartilhar teses. A OMC é um bom exemplo de organização que funciona adequadamente. Precisamos de bons exemplos.

Valor: E, na sua opinião, a OMS tem dado mau exemplo nesta crise?

Araújo: Não digo que a OMS tenha essa visão. É a visão que se tem sobre a OMS. Uma visão interna nossa. Esse adjetivo “global”, que as pessoas gostam muito de usar, o que significa? Não é, como frequentemente se pensa, um problema com o qual os países não conseguem lidar e você precisa de uma entidade acima deles para resolver. O fato de um problema afetar todo o mundo não significa que é preciso ter uma solução única para todos. Não se trata de ser contra organismos internacionais. Trata-se de recuperar o papel dos Estados nacionais como agentes fundamentais de resposta em situações de crise,  o que não impede uma coordenação entre diferentes países.