Valor Econômico, v. 20, n. 4972, 01/04/2020. Política, p. A9

‘Bolsonaro cria caos que não existe’

Cristiane Agostine


O cenário de colapso social, com uma legião de pessoas famintas, sem emprego nem renda, saqueando comércios em meio à pandemia do novo coronavírus, é afastado, neste momento, pelas lideranças dos principais movimentos populares do país.

Dirigentes sociais discordam do discurso repetido pelo presidente Jair Bolsonaro, de que a manutenção da quarentena deve gerar o caos social no país, e avaliam que a aprovação do auxílio emergencial de R$ 600 a trabalhadores informais durante três meses, que pode chegar a R$ 1,2 mil por família, dará fôlego momentâneo a 30,5 milhões de pessoas. Os movimentos populares, no entanto, pressionam o governo pela sanção imediata da proposta aprovada pelo Congresso, e pedem celeridade na distribuição dos recursos à população de baixa renda.

Líder nacional do MST, João Pedro Stédile diz que a ideia do colapso social é usada pelo presidente para reforçar o temor da população e, dessa forma, pressionar pelo fim do isolamento social. “Não vi nenhum sinal ainda de caos. A população está apreensiva, com medo, mas ainda não existe isso [colapso social]”, afirma. “É um discurso reiterado pelo grupos de direita, que atuam nas redes sociais, para criar um clima de caos que não existe”, diz. Stédile.

Na avaliação do líder do MST, o discurso do “colapso social” pode ser usado por Bolsonaro como justificativa para tomar medidas autoritárias. Há duas semanas, o presidente não descartou decretar estado de sítio por conta da epidemia dos casos de covid-19 e disse que “ainda não considera decretar estado de sítio.

Stédile defende a manutenção da quarentena e diz que a população está “disciplinada”, seguindo as orientações dos governadores, de manter o isolamento social. Para o líder do MST, é um falso dilema dizer que é preciso escolher entre salvar a economia ou manter a quarentena, ou seja, salvar vidas. “Esse discurso revela o grau de despreparo e irresponsabilidade do sujeito que infelizmente está ocupando a Presidência”, diz Stédile. “Bolsonaro, com essas atitudes, revela que está completamente isolado da sociedade brasileira e tem que apelar para um discurso populista, rasteiro, para manter aglutinados seus apoiadores nas redes sociais”, afirma. “Não há mais nenhuma voz no mundo todo que tenha a mesma postura e a mesma linha política de Bolsonaro.”

No comando do MTST, Guilherme Boulos diz o país enfrentará o “caos social” se o governo não assumir responsabilidades e se não implementar imediatamente o auxílio de R$ 600 aos mais carentes. “Se demorar alguns dias, terá um forte impacto na população”, diz. “Esse auxílio será uma medida decisiva para evitar o caos”, afirma. O líder dos sem-teto cobra outras medidas para garantir a seguridade social e ações do governo federal para preservar empregos e a renda dos trabalhadores. O auxílio de R$ 600 para os trabalhadores informais foi definido pelo Congresso, apesar de o governo ter defendido que o benefício fosse de R$ 200.

“É claro que o efeito que o isolamento social tem na economia coloca milhões de pessoas no desespero. Mas não existe essa história de ou você morre de fome ou morre com a covid-19”, afirma. “Se o governo federal cumprir com sua responsabilidade social, apesar de Bolsonaro, não vai ter o caos social, nem os saques por desespero da população”, afirma Boulos. “A aposta no colapso social é para quem busca uma saída autoritária”, diz Boulos, que concorreu pelo Psol contra Bolsonaro na disputa presidencial de 2018.

Com atuação nas periferias de grandes centros urbanos, o líder da Central dos Movimentos Populares, Raimundo Bonfim, também reforçou a defesa do isolamento social como uma das medidas para combater a pandemia do novo coronavírus. “O presidente está apostando no caos, com uma preocupação das pessoas que é a falta de renda e de emprego.

É irresponsável fazer esse jogo de ter que escolher se vai morrer de fome ou contaminado pelo vírus. Ele induz as pessoas que estão com medo a voltar ao trabalho”, diz Bonfim. ‘ A situação econômica é realmente preocupante, mas temos que evitar a contaminação em massa e dar tempo para que o sistema de saúde possa ser estruturado”, diz.

Movimentos populares lançaram a campanha “Bolsonaro paga já”, para pressionar o governo a sancionar o projeto que prevê o auxílio e pagar os trabalhadores. “Esse auxílio não resolve o problema, mas já alivia”, diz Bonfim. “E o governo tem que pagar agora, porque muitas famílias não têm mais um centavo.”

As frentes de esquerda Brasil Popular e Povo Sem Medo, junto com mais de 70 movimentos populares, divulgaram uma cartilha com propostas para combater as crises social e econômica decorrentes da epidemia do coronavírus. Junto com partidos de centro-esquerda, os movimentos sociais e entidades buscam construir pontes com partidos de centro e de direita para fazerem frente a Bolsonaro. Em comum, lideranças sociais avaliam que o presidente tornou-se o “principal obstáculo” no combate à pandemia, mas afirmam não há apoio político neste momento para o impeachment, além de ser um processo demorado.

“Mas há outras saídas jurídicas, como a cassação da chapa de Bolsonaro pela Justiça Eleitoral e o acolhimento de notícia-crime contra o presidente pelo Supremo”, diz Boulos. Stédile diz que é preciso “encontrar alguma forma jurídica” para que o presidente deixe o governo. “Já existe um clima de tentar construir a transição para um governo de ‘salvação nacional’, que tenha a responsabilidade política de unir a sociedade pauta primeiro salvar o povo, a saúde, depois reorganizar a economia, para ter emprego e renda.”