O Globo, n. 32558, 27/09/2022. Economia, p. 15

Verba de R$ 25 mil

Manoel Ventura


Após o ano de 2022 ficar marcado pelo maior número de mortes causadas pelo excesso de chuvas no Brasil em uma década, o governo Jair Bolsonaro propôs um corte de até 99% nos recursos voltados para obras emergenciais, redução e mitigação de desastres naturais. A tesourada faz parte da proposta de Orçamento do próximo ano enviada ao Congresso Nacional. O projeto orçamentário distribui cortes também em outras áreas, como segurança hídrica, saneamento básico, infraestrutura e saúde indígena.

O corte de 99% foi aplicado sobre a ação voltada para “obras emergenciais de mitigação para redução de desastres”, do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), como descreve a proposta orçamentária de 2023. O recurso saiu de R$ 2,8 milhões para R$ 25 mil, dinheiro considerado suficiente para atender 2.750 pessoas, de acordo com o próprio projeto.

Só em Petrópolis, na Região Serrana do Rio, neste ano, mais de 230 pessoas morreram por causa das chuvas. Em 2022, pelo menos 457 pessoas morreram em desastres causados pelas chuvas no Brasil, segundo levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM).

Também houve um corte, de 94%, para “execução de projetos e obras de contenção de encostas em áreas urbanas” —o recurso voltado para este fim saiu de R$ 53,9 milhões neste ano para R$ 2,7 milhões em 2023, dinheiro suficiente para atender 2 mil pessoas. O recurso para sistemas de drenagem urbana e de manejo de águas pluviais em municípios sujeitos a eventos decorrentes de inundações, enxurradas e alagamentos caiu 95%. Essas ações são consideradas por especialistas como fundamentais para mitigar riscos causados por cheias, como enchentes e queda de encostas.

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, professor titular do Ippur/UFRJ e coordenador do Observatório das Metrópoles, afirma ser necessário um programa de reforma de espaços vulneráveis, que estão em encostas e na beira de rios, por exemplo. Para isso, diz, é preciso um programa contra desastres coordenado e custeado pelo governo.

— Precisamos de obras de drenagem, de contenção de encostas, de reconstrução de moradias —afirma, lembrando as clássicas cenas de políticos liberando recursos logo após o desastre acontecer. — Não dá para trabalhar apenas com operações de socorro, isso desperta potencial político, mas não muda nada. É preciso antecipar esses problemas.

R$ 2.500 para o semiárido

Da mesma forma em que houve corte para cidades afetadas com excesso de chuvas, municípios que sofrem com a falta de água também foram afetados. De modo geral, o dinheiro para medidas estruturantes e ações voltadas para a gestão de recursos hídricos, revitalização de bacias hidrográficas e acesso à água caiu um terço na comparação entre 2022 e 2023. Saiu de R$ 1,5 bilhão para R$ 1 bilhão. Nesses cortes, está o dinheiro para reabilitação de barragens, entre outros.

São apenas R$ 2.500 reservados para implantação, ampliação ou melhorias em sistemas de abastecimento de água em municípios do semiárido. Um recurso suficiente para atender nove casas, numa região onde moram mais de 20 milhões de pessoas. Neste ano, eram R$ 100 mil para este fim. Ou seja, um corte de 97,5% em recursos que já eram insuficientes.

Embora haja dinheiro para a transposição do Rio São Francisco, diversas cidades do semiárido dependem de outras ações federais para levar água potável à população. Isso se dá por sistemas adutores, por exemplo, ou distribuição de água por meio de carros-pipa, além da construção de cisternas. E o programa voltado para construção de cisternas é um dos grandes afetados pelos cortes no Orçamento de 2023.

Destinado a famílias rurais de baixa renda atingidas pela seca ou por falta regular de água, o programa de construção de cisternas teve um corte de 96%, para R$ 2,2 milhões. Um dinheiro que dá para levantar exatamente 492 cisternas.

Enquanto faltam recursos para uma série de ações, foram reservados R$ 19,4 bilhões para as emendas de relator, que irrigam as negociações entre o governo e o Congresso por meio do chamado orçamento secreto.

O Ministério da Economia afirmou, em nota, que a elaboração da proposta orçamentária ocorreu em um “contexto desafiador, em meio ao elevado nível de indexação e rigidez alo cativadas despesas, o que obrigou a uma alocação de recursos bastante conservadora, reduzindo o espaço para o atendimento de diversas ações relevantes”.

A própria pasta admite que a necessidade de reservar recursos para emendas de relator fez ampliar as dificuldades para o atendimento das despesas do Poder Executivo e que pode haver destinação de mais recursos ao longo da tramitação da proposta pelo Congresso.

O Ministério do Desenvolvimento Regional disse que as necessidades de recurso para o Orçamento de 2023 foram formalmente encaminhadas ao Ministério da Economia. O Ministério da Cidadania, que comanda o programa de cisternas, não respondeu.

Na pasta da Saúde, além dos cortes no Farmácia Popular (de 60%), o Orçamento do próximo ano prevê uma redução de 5,5% para aquisição de vacinas — são R$ 8,6 bilhões reservados para esse fim.

Os cortes também foram distribuídos para outras áreas. O saneamento básico perdeu 65% de orçamento, o que afeta ações como controle e vigilância da qualidade da água para consumo humano; implementação de projetos de coleta, triagem e reciclagem de resíduos sólidos, e implantação e melhoria de sistemas de abastecimento de água em municípios com até 50 mil habitantes.

Diálogo com o Congresso

O dinheiro para a saúde indígena também despencou, caindo 60% —para R$ 664 milhões. Esse recurso é comandado pelo Ministério da Saúde, que afirma estar atento às necessidades orçamentárias e diz que buscará, em diálogo com o Congresso, as adequações necessárias na proposta.

A lista de cortes atinge ainda a infraestrutura. O ministério perderá R$ 1 bilhão para investimentos. Desse montante, a maior parte se refere ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte, que perderá R$ 899 milhões, o que dificultará ainda mais a manutenção da infraestrutura nacional. A pasta diz que trabalha ativamente para garantir os investimentos no setor de transportes, focando na eficiência do uso do orçamento público, e destaca seu programa de concessão de ativos à iniciativa privada.

A proposta orçamentária ainda será analisada pelo Congresso. Juliana Damasceno, economista da Tendências Consultoria, afirma que será necessário recompor despesas de custeio e investimentos, chamadas de discricionárias. Em sua opinião, o problema não foi necessariamente o teto de gastos, mas não ter havido reformas estruturais para abrir espaço no Orçamento:

— Como não tinha espaço, acabou sendo feito ajuste focado em investimentos, reduzindo o custeio ao máximo possível. O Orçamento é fruto de decisões políticas. Ao mesmo tempo que não tem espaço suficiente para investimento, acaba-se preservando, por exemplo, o orçamento secreto.